No início da tarde de 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou que a disseminação da covid-19 caracterizava uma pandemia. A partir disso, o mundo enfrentou distintas fases da doença, com muitas incertezas, recordes de mortes, desenvolvimento de vacinas e um questionamento recorrente: quando chegaremos ao fim? Quase três anos depois, ainda não há uma resposta concreta para a pergunta. Mas especialistas da área concordam que, de forma geral, a situação atual é muito melhor e indica um período de transição para uma endemia — só não há como garantir quando isso acontecerá.
Oficialmente, a OMS ainda mantém o nível máximo de alerta para a disseminação da doença. Em 30 de janeiro deste ano, o diretor-geral da organização, Tedros Adhanom Ghebreyesus, decidiu concordar com a recomendação do Comitê de Emergência da Covid-19 de que a pandemia continuasse sendo uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (definida por um evento extraordinário, que constitui um risco para outros países através da disseminação global e potencialmente requer uma resposta mundial coordenada). Mas, em uma entrevista publicada na semana passada pelo jornal O Globo, a líder técnica da OMS, Maria Van Kerkhove, afirmou que “nunca estivemos tão perto de acabar com a emergência”.
Questionada pela reportagem sobre qual seria a previsão para o possível fim da emergência de importância internacional, a OMS apontou em nota que, conforme o comitê, a pandemia “provavelmente está em um ponto de transição”, que “precisa ser conduzida com cuidado”. O órgão ainda destacou que a situação é bem melhor do que no ano passado, quando a onda da variante Ômicron estava em seu auge, mas fez um alerta sobre o aumento do número de óbitos nos últimos três meses — o registro contínuo de mortes também foi citado como algo a ser ponderado pela epidemiologista americana da entidade.
“Nas últimas oito semanas, mais de 170 mil pessoas perderam a vida para a covid-19. E essas são apenas as mortes relatadas; sabemos que o número real é muito maior”, ressalta o texto enviado pela OMS que, em seguida, indica que não se pode controlar o vírus, mas “fazer mais para abordar as vulnerabilidades das populações e dos sistemas de saúde”.
De acordo com o órgão, isso significa vacinar 100% os grupos de maior risco, aumentar o acesso a testes e ao uso de antivirais, tomar medidas específicas quando há incremento nos casos da doença, manter e expandir as redes de laboratórios e combater a desinformação.
Com isso, a organização acredita que será possível avançar para um cenário ainda melhor: “Continuamos esperançosos de que, no próximo ano, o mundo fará a transição para uma nova fase em que reduziremos as hospitalizações e mortes ao nível mais baixo possível e os sistemas de saúde serão capazes de gerenciar a covid-19 de maneira integrada e sustentável”.
Na entrevista ao O Globo, Maria Van Kerkhove comentou que, apesar de ainda estarmos em uma pandemia, o esperado é acabar com a emergência neste ano. Segundo a líder técnica, a ideia era ter encerrado em 2022, mas isso não foi possível porque as ferramentas disponíveis não foram utilizadas da forma mais eficaz em todo o mundo. "Mas certamente estamos indo na direção certa. Temos ferramentas que podem salvar vidas, como no atendimento clínico com antivirais e outras terapias, e com as vacinas, que são seguras e eficazes para prevenir doença grave e as mortes. Se as pessoas recebem o reforço e doses adicionais, sabemos que esse nível de proteção permanece muito alto por algum tempo. Então, estamos em um estágio diferente, nunca estivemos tão perto de acabar com a emergência", disse.
A especialista salientou ainda que esse término exige um esforço ao redor do mundo. "Nós, como organização, precisamos acabar com essa emergência em todos os lugares e estamos caminhando para fazer isso. Mas há mais trabalho a fazer", analisa.
O que muda com a troca de status
Especialistas da área da saúde consultados por GZH concordam que, no Brasil, já se considera um cenário de transição para endemia — status de doenças recorrentes, que se manifestam com frequência em determinadas regiões, mas não sobrecarregam o sistema de saúde ou apresentam excesso de mortalidade, como a gripe e a dengue. Eles reforçam, contudo, que o futuro do Sars-Cov-2 ainda é rodeado de incertezas e, por isso, a declaração de fim da pandemia e da emergência em saúde pública de interesse internacional exige muita cautela por parte da OMS.
O infectologista Alexandre Naime Barbosa, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e professor e cientista da Universidade Estadual Paulista (Unesp), explica que a declaração de emergência envolve uma avaliação de muitos países, já que há situações muito distintas entre os locais. No Brasil, por exemplo, o fim da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) foi anunciado pelo então ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, em abril de 2022 — uma avaliação que neste momento é considerada correta, afirma o especialista:
— Não estamos vivendo uma situação de emergência em saúde pública. A covid-19 ainda é uma doença que vitima cerca de 50 a 70 pessoas por dia, o que dá em torno de 1,5 mil a 2 mil por mês, mas não é mais aquela tragédia que aconteceu quando o número de óbitos diário passava disso. Então, já podemos dizer que é uma doença que está cada vez mais endêmica. O vírus está circulando de uma forma importante, há milhares de casos todos os dias, mas o impacto disso para o sistema de saúde está cada vez menor, graças ao avanço da vacinação.
Segundo Barbosa, a pandemia como emergência de saúde pública de fato já acabou em muitos outros países, mas a OMS mantém o status porque oficializar o fim leva a uma série de consequências, que estão relacionados principalmente ao enfrentamento da doença. Com a manutenção da emergência de interesse internacional, muitos podem importar vacinas por preço mais barato ou até mesmo receber doações de imunizantes, insumos e medicações. Então, ainda que na maioria das nações não haja uma alta taxa de mortalidade ou um sistema de saúde sobrecarregado, segue existindo a necessidade de disponibilizar esses recursos logísticos para o enfrentamento do problema, em especial aos países mais vulneráveis economicamente.
Marcelo Gomes, pesquisador em saúde pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e coordenador do InfoGripe, concorda que o Brasil está em uma situação mais “confortável”, em que o vírus continua presente em um patamar mais estável, com mais estados apresentando queda ou estabilidade em seus números - ainda que haja internações e mortes. Ele comenta que o último aumento de casos, no final de 2022, se manteve similar ao pico da metade do ano, o que mostra o quanto estamos em um momento distinto, que classifica como o melhor até agora.
— As vacinas continuam dando uma resposta satisfatória, mesmo tendo questões particulares sobre a duração da proteção, especialmente nas populações de maior risco, mas felizmente conseguimos chegar em uma situação mais confortável. Estamos em um cenário de endemia, atualmente isso é um consenso, mas trabalhar com expectativa de erradicação é utopia. É um vírus que, infelizmente, tudo aponta que veio para ficar — opina.
É justamente pela impossibilidade de erradicar o Sars-Cov-2 que o virologista Fernando Spilki, professor da Universidade Feevale e coordenador da Rede Corona-Ômica do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), considera praticamente inalcançável o cenário ideal para declarar o fim da pandemia, que é quando ninguém mais esteja em risco pelo vírus. Entre os parâmetros para mudar o status, ele considera ter segurança no sentido de a doença causar óbitos e internações em níveis similares ao que se observou em outras pandemias, como a de H1N1.
O problema é que, diferente da gripe, que tem mortalidade de 0,2% entre a população, a mortalidade da covid-19 é de 2% a 3% em populações não vacinadas contra a doença:
— Em virtude dos números, é preciso ter muita cautela. Por vezes, declarações de fim de pandemias foram prematuras, mas a responsabilidade de declarar o fim de uma pandemia de Influenza e Zika, por exemplo, é diferente, porque os danos são muito mais baixos do que se calcula para a covid.
Futuro de incertezas e desafios
De acordo com o pesquisador da Fiocruz, não é possível descartar novas ondas de grande impacto, como o Brasil teve em anos anteriores, porque o vírus sofre mutações. Durante sua entrevista ao jornal O Globo, a líder técnica da OMS, Maria Van Kerkhove, comentou que a grande preocupação em torno das variantes do vírus é não saber como será a evolução. Há um risco, por exemplo, de que, com novas cepas, o vírus se espalhe para diferentes espécies animais, sofra mutações e volte para os humanos.
— Há muita incerteza. Faz apenas três anos que lidamos com esse vírus, embora pareça muito mais tempo. Nosso entendimento ainda é bastante limitado. Por isso, temos que nos preparar para diferentes tipos de cenários. Não sabemos se haverá uma mudança na gravidade. Essa é a grande preocupação agora — afirmou.
Mesmo que não seja a única possibilidade considerada, o mais provável, na visão de Gomes, é que tenhamos novas fases de aumentos de casos, mas sem cenários críticos como os dos primeiros anos de pandemia — similar ao que ocorreu em 2022, quando houve um acréscimo no número de infectados sem um grande impacto em quadros graves e mortes:
— O horizonte é ter ciclos de aumento, mas não sabemos quando. Estamos em situação de endemia, só que ainda sem sazonalidade. Ainda não se consegue definir com precisão quando é o período típico de aumento de casos, porque cada ano foi um pouco diferente. Mas, em relação à intensidade, o mais provável é que não voltemos a ter impactos tão fortes quanto em 2020 e 2021.
Entretanto, os especialistas apontam alguns desafios para manter esse cenário, como a elevação dos níveis de cobertura vacinal e o combate à desinformação sobre a segurança e eficácia dos imunizantes. O professor Fernando Spilki sinaliza também que é preciso continuar com o monitoramento da circulação do vírus. Isso, inclusive, é essencial para que se possa decretar com segurança o fim da pandemia.
— O fim da pandemia não decretará que estamos livres do vírus, muito pelo contrário. Então, precisamos evoluir em vacinação, manter e intensificar o monitoramento do vírus e, a partir disso, ter uma vigilância sobre a mutação e a circulação dele. Esses são elementos fundamentais que viriam no pós-pandemia. Ao decretar o fim, o principal medo é de desmobilização — alerta.
O professor lembra que pouco se manteve das estruturas de vigilância de vírus e diagnóstico ao fim das pandemias de H1N1 e Zika. No caso da covid-19, porém, houve injeção de recursos e organização do sistema de saúde para dar resposta e acompanhar a situação, o que não pode ser perdido dessa vez.