Uma portaria publicada pelo Ministério da Saúde em maio deste ano vem causando preocupação entre hospitais que realizam procedimentos cardiológicos via Sistema Único de Saúde (SUS) e também nas autoridades municipais e estaduais de saúde de todo o Brasil. O documento reduziu em até 50% os valores pagos pelo SUS à tabela de procedimentos, medicamentos, órteses, próteses e materiais especiais. Há relatos de falta de equipamentos nos hospitais, pois os fornecedores estariam se negando a vender pelos valores da nova tabela, e instituições atendendo somente casos de urgência e emergência.
O valor pago por um cardiodesfibrilador, por exemplo, passou de R$ 51 mil para R$ 17 mil. Por um marca-passo, um dos dispositivos mais utilizados em procedimentos no país, o SUS está repassando cerca de R$ 2.850, enquanto os fornecedores estão vendendo na faixa dos R$ 5 mil. Segundo a secretária estadual da Saúde (SES), Arita Bergmann, a decisão da União não chegou a ser discutida com o setor de saúde.
— Nós e todos os Estados fomos surpreendidos com uma portaria do Ministério da Saúde, onde havia uma mudança de tabela das OPMES (Órteses, Próteses e Materiais Especiais) da área cardíaca. Ao tomarmos conhecimento, nos reunimos com os municípios em gestão plena porque nós, do Estado, contratualizamos alguns serviços. Os municípios nos disseram que não teriam condições de complementar esta diferença no contrato. Nós, do Estado, não tínhamos previsão de orçamento para este fim porque isso entrou este ano e o orçamento é votado no ano anterior — justifica a secretária.
Em julho deste ano, enquanto visitava o Instituto de Cardiologia, em Porto Alegre, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, recebeu das mãos do secretário municipal da Saúde (SMS) de Porto Alegre, Mauro Sparta, um documento assinado por Arita e pelo secretário da Capital solicitando atenção especial para a situação e sugerindo que o Ministério regulasse o mercado responsável pela venda destes equipamentos.
— Chamei a atenção para esta dificuldade, solicitando que o Ministério da Saúde, se possível, tomasse uma providência em relação a este fato. Estes procedimentos são de alta complexidade. E alta complexidade é de responsabilidade da União. O recurso anualmente vem da União para os hospitais poderem comprar (os dispositivos) — explica Sparta.
A SMS da Capital está fazendo, afirma o secretário, uma ata de registro de preços, na tentativa de que os hospitais de Porto Alegre obtenham os produtos por menores valores, e a SES elabora uma licitação.
— Não é uma tarefa simples porque só de stents (tubo usado em cirurgia cardíaca) são mais de cem tipos. A ideia é conseguirmos licitar por preços melhores que as empresas estão colocando para os hospitais. Mas não há solução de imediato — sintetiza a secretária estadual.
Enquanto o impasse permanece, hospitais de Porto Alegre e do Interior passaram a atender somente casos de urgência e emergência e já contabilizam prejuízos. Em Ijuí, o Hospital de Caridade de Ijuí optou por não deixar a população desassistida, cumprindo a contratualização com o SUS de até 30 implantes por mês. O problema, segundo o diretor clínico da instituição, Rafael Manhabosco Moraes, é que o hospital está tirando do próprio bolso para manter a meta acordada antes da troca da tabela.
— Como estamos tendo uma média de prejuízo de R$ 2,5 mil por implante, certamente, esta conta passa de R$ 150 mil investidos de recursos próprios para dar conta da demanda. Há um desbalanço entre o que a gente consegue comprar e o que a gente recebe. As empresas (fornecedores) foram bem claras e, inclusive, mandaram cartas dizendo para todos os hospitais que vão continuar fornecendo material, mas com os preços que eram praticados antes. Por estes preços novos, se os hospitais quiserem comprar, elas não vão fornecer — relata Rafael.
Na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, há pelo menos 35 pessoas aguardando pela troca de um marca-passo. Segundo o diretor médico do Hospital São Francisco, que integra a Santa Casa, Fernando Lucchese, o marca-passo mantém o ritmo cardíaco de quem tem a frequência, em média, de 30 batimentos por minuto, ajudando a aumentar para 70/80 batimentos por minuto. O dispositivo costuma ter vida útil de oito a dez anos, precisando ser trocado pelo menos seis meses antes do fim do prazo. Somente em 2020, conforme a Associação Brasileira da Indústria de Alta Tecnologia de Produtos para Saúde (Abimed), 49 mil dispositivos cardioeletrônicos foram implantados em pacientes no Brasil.
Lucchese afirma ter no hospital o material consignado, mas não pode usá-lo porque não poderá pagar pelo valor exigido pelos fornecedores, acordado antes da troca da tabela.
— Não houve preparo. Nem os secretários municipais, nem os estaduais foram preparados para isso. Foi uma coisa imposta de cima para baixo. E o problema continua em todo o Brasil — aponta o médico.
Lucchese vai além, dizendo ter enviado ao ministro da Saúde, à secretária estadual da Saúde e ao secretário municipal da Saúde a lista com os 35 nomes que esperam pela troca do marca-passo.
— Estamos fazendo, exclusivamente, casos graves, que têm risco de vida. Fazemos estes de qualquer forma. Mas há pacientes que estarão necessitando de troca porque a bateria está terminando. Não posso fazer nada. Eles (os que receberam a lista) que assumam o risco - finaliza o diretor.
GZH tenta contato com o Ministério da Saúde desde terça-feira (6). Porém, até o fechamento desta reportagem, não teve retorno. Ao Jornal do Almoço, da RBSTV, o Ministério respondeu que "a revisão dos valores é um processo de rotina e tem como objetivo evitar sobrepreços nos itens de fabricação que chegaram a 175%". O pasta informou ainda que "mais R$ 200 milhões serão destinados para a atenção cardiovascular através do programa QualiSUS Cardio". O Ministério, porém, não informou quando estes valores serão repassados.