Em 2012, um operário da construção civil do Rio de Janeiro, de 24 anos, teve uma barra de ferro atravessada na cabeça. Quem testemunhou a cena jamais poderia esperar que o homem sobrevivesse. Hoje, ele tem uma vida praticamente normal. Depois de 10 anos estudando o caso, cientistas brasileiros e americanos conseguiram comprovar o motivo do "milagre": o lado do cérebro não afetado pelo acidente assumiu as funções da área lesionada. A descoberta inédita, publicada na revista científica Lancet, abre caminho para novos tratamentos.
O acidente foi em 16 de agosto de 2012. Ele amarrou um vergalhão de 2,5 metros de comprimento. Fez sinal para um colega que estava a 15 metros de altura puxar a barra de ferro. Quase chegando ao seu destino, o vergalhão se soltou e caiu na cabeça do trabalhador. Foi um impacto de cerca de 300 quilos. A barra entrou pelo lado superior direito da cabeça e a ponta saiu entre os olhos.
Mesmo com o vergalhão atravessado na cabeça, o jovem chegou ao hospital lúcido e orientado. Foi submetido a uma cirurgia de seis horas e ficou duas semanas internado. Segundo os médicos que o atenderam, ele perdeu aproximadamente 11% de massa encefálica. A perda foi do lado direito do córtex pré-frontal. Essa região do cérebro é uma das mais importantes.: responsável pela tomada de decisões, comanda impulsos, atenção, raciocínio, planejamento das ações e controle das emoções.
Histórico
O único registro disponível na história da Medicina de acidente similar indicava que o operário teria alterações comportamentais significativas. Foi em 1848. O operário americano Phineas Gage, de 25 anos, sofreu um acidente muito parecido com o do brasileiro. Perdeu cerca de 15% de massa encefálica. A única diferença foi que, no caso de Gage, a barra de ferro entrou pelo lado esquerdo da sua cabeça.
Os relatos mais conhecidos da época, no entanto, dão conta de que, após o acidente, o americano se tornou agressivo e grosseiro. São recorrentes as descrições de que ele "não era mais o mesmo homem".
Pesquisadores da Fiocruz, da UFRJ, no Rio, e da Escola de Medicina Albert Einstein e da Universidade de Nova York, nos Estados Unidos, decidiram acompanhar o caso recente. Queriam traçar paralelos. O trabalho é fruto da tese de doutorado de Pedro de Freitas, sob orientação do professor Renato Rozental, pesquisador da UFRJ e da Fiocruz. A pesquisa contou com recursos não disponíveis na época do acidente do americano: exames como tomografia, eletroencefalograma, ressonância magnética, modulação da atividade elétrica cerebral e exames neuropsicológicos para avaliar as disfunções no lobo frontal e estimar as consequências da lesão.
O operário brasileiro não apresentou alterações no comportamento. A única sequela do grave acidente é uma epilepsia pós-traumática. É comum em caso de ferimentos graves na cabeça e é controlável com medicamentos. Os pesquisadores começaram, então, a questionar os relatos relacionados a Phineas Gage. Descobriram outras impressões, menos conhecidas. E sustentam que ele não teria tido alterações comportamentais.
— Os relatos da época em que ele morou no Chile (de 15 a 20 anos depois do acidente nos EUA) não descrevem um homem grosseiro. Lá, ele trabalhou como cocheiro, lidava com cavalos, que são animais sensíveis, e com o transporte de passageiros em charretes. Era tido como uma pessoa educada, sensível e responsável — conta Renato Rozental.
— Nosso estudo acabou contribuindo também para a compreensão do caso de Phineas Gage, considerado um dos grandes mistérios da neurociência.
Compensação
No caso do brasileiro, já logo depois do acidente, os pesquisadores constataram que o seu lobo frontal esquerdo começou a compensar o lado lesionado. Isso ocorria desde que aquele lado não fosse recrutado para outra atividade. As diferentes áreas do cérebro se comunicam por meio de impulsos elétricos. Quando uma área é lesionada, a atividade elétrica começa a funcionar mal e essa comunicação cerebral interna piora muito. Entretanto, explica Rozental, o hemisfério sadio começa a compensar essa atividade.
Para testar essa compensação, os pesquisadores pediram ao operário brasileiro que observasse um desenho cheio de detalhes. Em seguida, deveria copiá-lo sem olhar. Depois de três minutos, eles repetiram o pedido. Por fim, pediram novamente, depois de meia hora.
Os desenhos se mostraram muito acurados, mesmo após o período mais longo do experimento. Mas quando os cientistas suprimiram a atividade elétrica no lado sadio do cérebro e pediram que ele repetisse a tarefa, o resultado não foi tão bom. Isso mostrou uma capacidade deteriorada tanto da memória quanto do desenho. O operário também tem dificuldades para tarefas que exijam o recrutamento simultâneo dos dois lados do cérebro.
"Não houve declínios perceptíveis em seu processamento mental, raciocínio moral, comportamento social, capacidade de resolver problemas diários, capacidade de interagir com colegas de trabalho ou com familiares ou capacidade de agir com eficiência", conclui o trabalho.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.