A despeito de avançar na aplicação da primeira dose de imunizantes contra a covid-19, o Brasil enfrenta desafios para elevar a cobertura do esquema vacinal completo – algo essencial em meio à variante Delta, altamente transmissível e capaz de reduzir a proteção oferecida por apenas uma injeção.
Estatísticas oficiais do Ministério da Saúde da manhã desta quinta-feira (9) mostram que o Brasil aplicou a primeira dose em 63,5% de todos os habitantes e a segunda, em 32% – uma diferença de 31,5 pontos percentuais.
Em países do Hemisfério Norte e mesmo vizinhos latino-americanos, a diferença é bem menor. Em Portugal, por exemplo, a distância entre as coberturas é de apenas 7,6 pontos percentuais. Na Argentina, de 25,1. No Chile, de 3,5 pontos.
Médicos entrevistados por GZH dizem que o avanço da cobertura de primeira dose, inclusive maior do que nos Estados Unidos, é positivo, mas confirmam que há dificuldades em convocar a população aos postos de saúde para a segunda dose.
Campanhas do passado, como para hepatite B, que exige três aplicações, mostram que, quanto mais doses é preciso tomar para uma vacina, menor a chance de término do esquema vacinal. Entre as razões, estão esquecimento, sentimento de proteção e medo do efeito adverso da primeira injeção.
Ao mesmo tempo, analistas ressalvam que prefeituras atrasam a atualização do sistema de vacinação do Ministério da Saúde, o que diminui as estatísticas de coberturas brasileiras. A pasta não respondeu a questionamentos de GZH até o fechamento desta reportagem.
Afeta o cenário ainda a decisão do governo brasileiro de usar maior intervalo na AstraZeneca e Pfizer, de 12 semanas, o que possibilitou proteger mais pessoas, mas retardou a cobertura de duas doses, observa o médico Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). Na Europa, o intervalo varia, mas pode chegar a três semanas na França e quatro semanas na Alemanha.
Kfouri cita também que a campanha de imunização brasileira começou a deslanchar a partir de maio, com a vacinação de brasileiros com comorbidades abaixo dos 60 anos – portanto, é entre setembro e novembro que a grande massa da população sem doenças prévias buscará a segunda dose.
— Temos um problema de cobertura de segunda dose, mas como todo mundo tem. Com intervalos maiores, é um desafio maior ainda. Mas vamos chegar lá. Em setembro, diminuiremos o intervalo para oito semanas, o que deve ajudar. O brasileiro acredita na vacina. Temos um programa gratuito, com capilaridade, pessoas treinadas e rede de frio. A despeito de políticos, a confiança do brasileiro nas vacinas é grande. Terminaremos o ano como um dos países que mais aplicou primeira e segunda dose — analisa Kfouri.
No Brasil, avalia o diretor da SBIm, o movimento antivacina é incipiente na comparação com Estados Unidos, onde a campanha estacionou há semanas e não passa dos 62% de habitantes com primeira dose, e na França, onde o presidente Emmanuel Macron implementou o passaporte vacinal para frequentar bares e restaurantes. Pesquisa do Datafolha de julho mostrou que 94% dos brasileiros pretendiam se vacinar, 5% não e 1% não sabia.
Historicamente, países em desenvolvimento, o que inclui o Brasil, têm maior apreço por vacinas porque, décadas atrás, a população notou grande melhora na qualidade de vida com a chegada de imunizantes – países mais riscos, enquanto isso, tinham maior controle dos problemas por terem acesso a melhores remédios.
— O Brasil foi pioneiro em campanhas nacionais de multivacinação. Na década de 1970, criou o Plano Nacional de Imunizações (PNI) e havia dias nacionais de mobilização para a vacina. Na época, as famílias tinham medo de os filhos terem paralisia ou morrerem de sarampo. A rápida percepção de mudança com a introdução de vacinas criou no imaginário dos brasileiros o sentimento de enorme benefício com as vacinas, porque partíamos de um cenário muito ruim. Dia de vacinação ficou no imaginário como dia de festa e de avanço. Carregamos isso até hoje — acrescenta Kfouri.
Dificuldade é presente em todo o país
A dificuldade em avançar no esquema vacinal completo se dá de forma homogênea em quase todos os Estados brasileiros – Pará e Mato Grosso do Sul apresentam os melhores desempenhos.
O Rio Grande do Sul apresenta performance mediana, com a 12ª maior diferença entre aplicação de primeira e segunda dose. Ainda assim, apresenta a segunda maior cobertura de uma vacina do Brasil e a terceira maior no esquema completo.
Até esta quinta-feira, 70,7% dos gaúchos receberam uma dose, proporção acima do registrado na maior parte dos estados norte-americanos e mais alta do que em países como Alemanha, Holanda, Israel, Argentina e Suécia. E 39,4% dos gaúchos terminaram o esquema completo, proporção maior do que na Argentina, Austrália e a média brasileira.
O epidemiologista Paulo Petry, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), destaca que as falas antivacina do presidente Jair Bolsonaro prejudicaram a adesão à primeira dose dos brasileiros, mas pontua que a lembrança histórica da proteção conferida por vacinas falou alto.
— O negacionismo causa prejuízos. Mas, felizmente, apesar do mau exemplo, estamos superando esse problema. O Rio Grande do Sul é um estado mais escolarizado, com população mais idosa. E a mortalidade em idosos foi muito alta, o que causou receio. As pessoas buscam proteção, mesmo tendo afinidade política com um líder que nega. Felizmente, o Brasil tem boa tradição de vacinação — comenta.
Em comum, analistas destacam que, para avançar na vacinação, é preciso investir em campanhas governamentais e expandir a aplicação em locais movimentados e à noite, ao exemplo do Rolê das Vacinas em Porto Alegre ou a Balada da Vacina, de Canoas, que vacinou mais de 3 mil jovens em 24 horas.
— Tem que ter um ônibus que circula, posto de saúde avançado, ocupar lugares turísticos, de festa e de lazer, como a Orla, ir a locais periféricos e usar a noite para adolescentes. O que sinto falta são campanhas de conscientização para reforçar a importância da segunda dose. A primeira dose desperta o sistema imunológico, mas ela não é tão importante. Se a pessoa só faz uma, fica extremamente suscetível — acrescenta Petry.
Já o médico Rogerio Coelho Neto, coordenador do Grupo Técnico Covid-19 da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), diz que é difícil o Brasil avançar tanto na cobertura de segunda dose até o fim do ano sem que o governo federal invista mais em campanhas de conscientização.
— A surpresa é a primeira dose estar sendo tão bem aderida. Há algo entre a dose um e dose dois que faz estarmos perdendo as pessoas. Talvez não estejamos explicando que a dose dois é importante, que é possível ter reação adversa por alguns dias depois da primeira dose, mas que isso passa. A cobertura de segunda dose está sendo afetado pela polarização política e pela dificuldade do governo de colocar a importância da segunda dose em pauta. Falta vacina e informação — avalia Neto.