Usados largamente para indicar a infecção pelo coronavírus ou o contato prévio com ele, os testes disponíveis no mercado têm ganhado outro viés. Recentemente, algumas pessoas com o esquema vacinal completo contra a covid-19 têm lançado mão dessa estratégia para, supostamente, atestar o potencial protetor dos imunizantes. O que especialistas ouvidos por GZH afirmam, porém, é que esses exames são desnecessários neste momento. Contudo, testes adequados para este fim podem avaliar a resposta pós-vacina.
Uma das razões para não se fazer um teste é que eles usam um antígeno diferente daquele que está disponível na vacina. Acontece que a maioria dos exames foi desenvolvida para identificar a proteína N do coronavírus, e não a S, que é a que está presente em grande parte dos imunizantes.
A proteína N é aquela que está dentro do vírus e que enrola o RNA viral. Já a proteína S está na superfície. Para infectar uma pessoa, é necessário que a proteína S se ligue à célula humana. A escolha pela proteína N se deu porque é mais fácil e barato de produzir testes com ela, explica o médico e doutor em biotecnologia Fernando Kreutz, professor licenciado da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e diretor-técnico da Imunobiotech.
— A N me dá a informação se a pessoa entrou em contato com o vírus ou não. Todas as vacinas foram desenvolvidas com alvo na S. Eu ter anticorpos contra a N não me protege em nada. Anticorpos protetores são, obrigatoriamente, contra a proteína S, que é a que se liga na nossa célula — justifica.
Kreutz, também aponta que a eficácia das vacinas está correlacionada diretamente com a quantidade de anticorpos gerados contra a proteína S. As vacinas com maior eficácia produzem quantidades maiores de anticorpos.
A imunologista Cristina Bonorino, professora titular da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e membro do comitê científico da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI), dá um exemplo:
— Se compararmos uma pessoa que fez a (vacina) CoronaVac com outra que fez a Pfizer, veremos que quem tomou a segunda fez muito mais anticorpo para a proteína S, pois o imunizante só a usa. A CoronaVac utiliza o vírus inteiro, e a gente ainda não sabe o que protege mais desse imunizante: se é "essa célula" ou "esse anticorpo".
Isso significa que nosso sistema imunológico é muito complexo e não reage ao "invasor" apenas por meio de anticorpos (a chamada imunidade humoral), podendo haver, também, uma resposta celular. No caso da CoronaVac, como explicou Cristina, esse mecanismo de proteção ainda não é conhecido. Portanto, medir anticorpos, com os testes disponíveis no mercado, ainda não apresenta resultados fidedignos.
— Nesse momento, o grande interesse em pesquisa é descobrir quais são os correlatos de proteção, ou seja, o que a pessoa efetivamente vacinada tem que a protege — afirma Fernando Spilki, professor da Universidade Feevale.
Kit de detecção
Embora os testes rápidos ou sorológicos não sejam recomendados para pessoas pós-vacina, Kreutz destaca que um ensaio foi feito exatamente para essa finalidade: o ImunoScov19, que usa como alvo a proteína S total. O exame pode ser feito em casa com uma amostra de sangue colocada em um papel filtro — aos moldes do teste do pezinho — que é remetido ao laboratório. Além de identificar a proteção, o teste ainda consegue quantificar a resposta imune. Para isso, foi criado um valor de referência com base no perfil de resposta de pessoas recuperadas da covid-19.
— Atribuímos valores aos pacientes que tiveram covid-19 e se recuperaram. Assim, definimos unidades. Quando eu faço uma vacina, espero atingir esse nível compatível com a imunidade pós-covid. Tem que testar, mas com o teste correto — argumenta o pesquisador, responsável pelo desenvolvimento do exame. — Além disso, temos observado que alguns pacientes pós-vacina não desenvolvem o nível de resposta humoral (anticorpos) esperado. Precisamos avaliar o que fazer com estes pacientes — afirma Kreutz.
A testagem pós-vacina é algo que já foi utilizado em outras doenças como por exemplo a Hepatite B, completa o especialista.
Em contrapartida, a docente da UFCSPA refuta a ideia da testagem. Para ela, o sucesso do processo de vacinação é conquistado pelo coletivo, e não o individual, a exemplo do que foi visto no município de Serrana, em São Paulo. Por lá, 75% da população tomou as duas doses da CoronaVac, que resultou em uma queda de 95% das mortes, 86% das internações e 80% dos casos sintomáticos.
— Se fosse assim que a gente estudasse a imunidade das pessoas para a vacina, cada vacinado precisaria medir o Igg e diríamos: "tu estás protegido, tu não estás, tem que vacinar de novo". Mas não é assim. A proteção é vista na população. Estamos vendo o que a Organização Mundial da Saúde previu há um ano: uma vacina com eficácia de 50% e, se 70% da população for imunizada, a pandemia é controlada — defende.
Cuidados permanecem
Spilki acrescenta dois aspectos que também precisam ser levados em conta antes de fazer um teste após a vacina. Primeiro, é que um resultado negativo pode gerar a falsa sensação de insegurança. Por outro lado, um possível positivo pode trazer uma segurança exacerbada.
— Então, não há grande utilidade em fazer esses testes nesse momento. Ele não é definidor de nenhuma situação. O mais importante é tomar as duas doses do imunizante, isso está muito claro, e a continuar tomando os mesmos cuidados. Como nossa cobertura vacinal é baixa, usar máscara e evitar aglomerações.
O Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC, da sigla em inglês) não recomenda a testagem de pessoas completamente vacinadas e sem sintomas mesmo após a exposição a um indivíduo com covid-19. Segundo Kreutz, isso ocorre justamente em razão de os testes detectarem a proteína N sem conseguir quantificar a resposta imune.
A Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) também emitiu, em março deste ano, uma nota técnica desaconselhando a realização de sorologia para avaliar a resposta imunológica às vacinas.
No texto, assinado pelos médicos Mônica Levi e José Eduardo Levi, sublinham que "A complexidade que envolve a proteção contra a doença torna desaconselhável a dosagem de anticorpos neutralizantes com o intuito de se estabelecer um correlato de proteção clínica, pois certamente não se avalia a proteção desenvolvida após vacinação apenas por testes laboratoriais "in vitro" através da dosagem de anticorpos neutralizantes".