Uma polêmica na cidade de Camaquã, distante 129 quilômetros de Porto Alegre, consumiu a manhã de Jair Bolsonaro na última sexta-feira (19). Entrando ao vivo por telefone, o presidente da República exaltou o chamado tratamento precoce para a covid-19 e até um experimento que envolve a nebulização de pacientes com hidroxicloroquina diluída em soro, prática que não é prevista em protocolos de saúde do país. Não há comprovação de eficácia no uso dos fármacos contra o coronavírus e há risco de efeitos colaterais severos, como arritmia cardíaca.
Os fatos abordados por Bolsonaro ocorreram na primeira quinzena de março no Hospital Nossa Senhora Aparecida, em Camaquã, cidade de 66,4 mil habitantes. Uma médica contratada para atuar no pronto-socorro da instituição, Eliane Scherer, aplicou a nebulização de hidroxicloroquina diluída em um vereador que apresentava sintomas respiratórios.
A empresa terceirizada que faz a contratação e gestão do corpo de médicos resolveu demitir a profissional. A justificativa foi de que ela adotou tratamento não previsto em protocolos de saúde. Ela também teria colocado em risco outros pacientes e funcionários por ter feito a nebulização em ambiente aberto, e não em local de isolamento, e sem a máscara fechada acoplada ao rosto do paciente. São itens que podem ter exposto os demais ao vírus.
A médica Eliane utilizou a técnica em um vereador da cidade de Dom Feliciano que estava internado no local. O paciente, embora tenha chegado à emergência do hospital em busca de atendimento, não teve a necessidade de ser entubado ou de ser internado em UTI.
Segundo apurou a reportagem, o seu caso não era de maior gravidade. Depois de receber alta, tanto o vereador quanto a médica Eliane, a esta altura já demitida, passaram a defender publicamente a crença de que ele havia sido curado pela nebulização de hidroxicloroquina. Outros profissionais que atenderam o vereador discordam, asseguram que não é possível fazer a afirmação e ressaltam que ele recebeu outras medicações enquanto esteve hospitalizado com covid-19, como antibióticos e corticoides.
O caso virou discussão pública em Camaquã e chegou ao conhecimento do presidente Bolsonaro, que pediu para entrar ao vivo na rádio Acústica FM, emissora da cidade, que tratava do assunto na manhã de sexta, em um dos seus programas.
O ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Onyx Lorenzoni, telefonou para a rádio e foi colocado no ar, pelo viva voz de um celular, e logo depois pôs Bolsonaro em diálogo com o apresentador. Foram 10 minutos de conversa.
— Nós temos uma doença ainda que é desconhecida, novas cepas, e pessoas estão morrendo. Os médicos têm o direito, ou o dever, no momento em que falta o medicamento específico para aquilo, com comprovação científica, ele pode usar o que chama de off label, fora da bula. E no Brasil virou um tabu, praticamente é criminoso quem fala disso — iniciou Bolsonaro.
Na entrevista, Bolsonaro revelou que, naquela manhã, já havia telefonado para a médica de Camaquã que fez a nebulização experimental, para o paciente e para um diretor de hospital.
— Ela (a médica) falou muito humildemente que não é ideia dela a questão da nebulização. A primeira vez que ouvi falar disso foi lá no Estado do Amazonas. Agora, aqui no Brasil, a pessoa é criminalizada quando tenta uma alternativa para salvar quem está em estado grave — prosseguiu o presidente.
Antes de comentar a demissão da médica, Bolsonaro destacou a possibilidade de o apresentador da emissora ter ficado surpreso com o contato. O presidente quis falar sobre o tema porque o vereador que recebeu a nebulização havia concedido entrevista anterior na emissora, relatando a crença no sucesso do procedimento.
— Pedi para falar contigo (referindo-se ao apresentador). Você deve estar pensando, um presidente... Eu tenho muita coisa realmente para tratar em Brasília, mas a vida em primeiro lugar — afirmou.
Questionado sobre o tema, Bolsonaro avaliou que a demissão da médica provavelmente ocorreu por ela ter aplicado um tratamento experimental, sem previsão pelas autoridades médicas.
Para salvar vidas, vale qualquer coisa. Sabemos que a vacina é um custo bilionário para o mundo todo. E parece que grupos interessados em investir apenas na vacina é que deixam de lado a questão do tratamento preventivo que existe e também o tratamento logo após a contração da doença.
JAIR BOLSONARO
presidente
— Com toda certeza porque não está em protocolo do Conselho Federal de Medicina (CFM). Se bem que está no CFM, abre a hidroxicloroquina para uso. Não fala em nebulização, que é uma novidade. Parece que nasceu em Manaus essa novidade — disse o presidente.
Ele ainda defendeu o uso precoce da ivermectina, antes mesmo da apresentação de sintomas, como prevenção ao coronavírus. A medicação não tem eficácia comprovada, assim como a hidroxicloroquina.
— Para salvar vidas, vale qualquer coisa. Sabemos que a vacina é um custo bilionário para o mundo todo. E parece que grupos interessados em investir apenas na vacina é que deixam de lado a questão do tratamento preventivo que existe e também o tratamento logo após a contração da doença — finalizou o presidente.
Os relatos são de que, após a intervenção de Bolsonaro na polêmica, a cidade de Camaquã entrou em estado de ebulição. Há clima de divisão e tensão entre defensores e críticos do chamado tratamento precoce, sem eficácia comprovada. Médicos e enfermeiros relatam estar em ambiente de pressão, inclusive política.
As declarações do presidente ocorrem no momento em que o Brasil é o epicentro da pandemia no mundo, com leitos clínicos e de UTI superlotados na maior parte do país, escassez de medicamentos e alta de mortes. Neste sábado (20), o Brasil ultrapassou a marca de 292 mil óbitos derivados da covid-19.
Pivô da fala do presidente, Eliane Scherer é formada pela Universidade Federal de Rio Grande (Furg), fez clínica e geriatria na PUC-RS e também conta com uma especialização em Ecografia. A reportagem localizou a médica, que prefere não falar muito sobre o caso. Ela confirma que utilizou a hidroxocloroquina por meio de nebulização e diz que o tratamento já é usado em outros locais e consta na literatura médica.
— Estou passando por um momento difícil, proibida pelo hospital de aplicar o medicamento nos pacientes, a menos que o faça de forma particular. Mas não sou eu o tema, são os pacientes, que estão se beneficiando por isso. É para o bem deles. Não ganho nada com isso, custa R$ 1,50 cada cápsula para o tratamento. Espero que os pacientes contem isso, estou deixando eles gravarem sua experiência. Depois eu falarei com mais calma.
Hospital avalia denunciar médica ao MP e Cremers
O Hospital Nossa Senhora Aparecida, de Camaquã, estaria preparando uma denúncia que deverá ser feita na segunda-feira (22), no Ministério Público e no Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers), contra a médica que receitou a nebulização de hidroxicloroquina diluída.
Serão relatados supostos episódios de faltas éticas da profissional, muitos dos quais tornaram-se motivo de debates acalorados em grupos de WhatsApp. A médica era contratada para atuar na emergência do hospital, mas teria tentado aplicar nebulização de hidroxicloroquina em pacientes internados na UTI e nos leitos clínicos, ambientes em que ela não tinha autorização para atuar, chefiados por outros médicos que discordavam dos seus métodos. Há relatos de muita discussão e divergência entre os profissionais por conta destes procedimentos. Enfermeiros foram instruídos pela médica a aplicar as nebulizações, mas se negaram com a justificativa de que não há previsão para uso da medicação neste modelo.
Depois de ser barrada nas supostas tentativas de tratar pacientes da UTI e dos leitos clínicos, ela fez a nebulização com hidroxicloroquina diluída em doentes da emergência, onde ela era contratada para atuar. Um desses pacientes foi o vereador que, depois, veio a ter alta. Os relatos são de que, além da prática de um tratamento experimental e não autorizado, a médica supostamente trazia as doses diluídas de hidroxicloroquina de fora do hospital, em uma caixinha de isopor, o que não é usual. Depois de demitida, a profissional continua frequentando a instituição e receitando o experimento para pacientes da ala privada, onde médicos sem vínculo empregatício com a casa podem assumir o tratamento de enfermos que os tenham como referência.
Após os episódios dos últimos dias, a família de outro paciente internado em consequência da covid-19 ingressou neste sábado (20) com pedido na Justiça para que a instituição fosse obrigada a ministrar a nebulização de hidroxicloroquina diluída. As partes envolvidas ainda aguardam a decisão judicial.
O hospital prevê, nos seus protocolos, o tratamento de pacientes da covid-19 com medicamentos como a hidroxicloroquina, desde que obedecidos critérios como a prescrição médica e a administração pela via oral.
A reportagem contatou o Hospital Nossa Senhora Aparecida, de Camaquã, mas a resposta foi de que a instituição não irá se manifestar.