Um estudo realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) ajuda a explicar o iminente colapso do sistema de saúde em Estados como o Rio Grande do Sul.
A análise sustenta que o fim do ciclo de interiorização da doença, combinado à alta circulação entre municípios e à falta de medidas preventivas levou a uma “sincronização das curvas epidêmicas” no país. Isso significa que regiões metropolitanas e do Interior, que antes sofriam surtos da covid-19 em períodos diferentes, agora pioram de forma simultânea. O resultado é maior risco de colapso hospitalar e de disparada da mortalidade.
O texto da nota técnica chamada O Fim do Ciclo de Interiorização, a Sincronização da Epidemia e as Dificuldades de Atendimento nos Hospitais” diz: “A dinâmica ascendente da doença de maneira uniforme, em vários locais e ao mesmo tempo, se deve ao comportamento das pessoas e à dificuldade de bloqueios com base no território”. O trabalho aponta que parte das medidas de controle da pandemia em países da Europa e do Extremo Oriente se baseou na restrição da circulação entre municípios — o que não foi feito aqui.
— A pandemia teve duas fases. Chegou pelas grandes cidades e foi se interiorizando, aumentando casos porque todo mundo era suscetível. Depois que terminou de se espalhar, ficou dependendo da mobilidade das pessoas para voltar a subir. Como todo mundo começou a circular de qualquer forma e ao mesmo tempo nas férias e nas festas de final de ano, em um movimento capilarizado e uniforme, vemos um aumento sincronizado da pandemia no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e tantos outros lugares — explica o epidemiologista, pesquisador em Saúde Pública da Fiocruz e um dos autores do estudo, Diego Ricardo Xavier.
Cerca de 67% dos óbitos por covid no Brasil foram registrados em áreas metropolitanas até o último dia do mês de maio do ano passado. No final de outubro, essas cidades passaram a representar 33% das mortes — o equivalente a seu percentual na população brasileira, sinalizando o fim do ciclo de interiorização e preparando o terreno para a atual sincronização epidêmica.
No Estado, esse fenômeno pôde ser observado com mais clareza no começo do mês, quando, de forma inédita, as internações hospitalares passaram a crescer rapidamente em todas as regiões.
— Pela primeira vez, estamos vendo um agravamento geral, com elevação da demanda por leitos clínicos e de UTI — alertou o diretor da Auditoria do SUS da Secretaria Estadual da Saúde (SES) e integrante do gabinete de crise do governo estadual, Bruno Naundorf, no dia 19 de fevereiro.
Nesta semana, o governador Eduardo Leite anunciou a adoção de bandeira preta para todo o Rio Grande do Sul a partir do sábado (27), indicando risco altíssimo generalizado.
As novas variantes do coronavírus em circulação, segundo Xavier, podem funcionar como um agravante ao serem associadas a um maior risco de transmissão. Mas, na avaliação da Fiocruz, a maior responsabilidade pelo cenário atual se deve à alta circulação de pessoas entre cidades sem os cuidados necessários (como distanciamento e uso de máscara) combinada à baixa testagem que permitiria identificar e isolar doentes e pessoas com quem tiveram contato — o que significa quebrar a cadeia de contaminação.
Publicada em 7 de dezembro, a nota técnica previu o que ocorreria nas semanas seguintes: “Nos próximos meses, com a chegada das festas de fim de ano e as férias, a movimentação de pessoas pode ocasionar um crescimento uniforme entre regiões metropolitanas e cidades de interior (...) provocando novo colapso do sistema de saúde”.
Circulação generalizada do vírus amplia risco de explosão de casos
Uma das principais consequências do crescimento sincronizado da pandemia é que o sistema de saúde fica muito mais próximo do colapso em nível estadual ou nacional. Como todas as regiões ficam com alta demanda de pacientes, não há margem para transferir doentes.
— Não interessa mais se você tem dinheiro e um jato particular pra te levar para outra cidade ou Estado. Todos ficam sobrecarregados — afirma o epidemiologista Diego Ricardo Xavier.
Outro desdobramento do atual estágio da pandemia é que um pequeno aumento nos níveis de mobilidade é capaz de resultar em uma quantidade gigantesca de novos casos e hospitalizações no intervalo de poucos dias — já que o vírus circula com alta taxa de transmissão em praticamente todos os lugares.
Como resultado, ainda conforme o estudo da Fiocruz, é esperada uma elevação significativa na mortalidade — explicada, em parte, pela crescente dificuldade de conseguir vaga em UTI. Para amenizar esse cenário já visto em boa parte do país, Xavier avalia que medidas intermediárias como restrições de atividades à noite ou em finais de semana podem até ajudar a evitar determinados tipos de aglomeração. Considera, porém, que o avanço desenfreado da pandemia justifica medidas drásticas.
Diego Xavier sugere duas semanas com limitação significativa da circulação — tempo que a doença pode levar para se desenvolver. Depois disso, ainda demoraria pelo menos mais sete a 10 dias até os sistemas de saúde desafogarem, segundo ele, já que muitas pessoas estão se contaminando agora e ainda vão demorar a apresentar sintomas e buscar ajuda.
— Mas não adianta uma cidade adotar e fiscalizar esse tipo de medida, e uma cidade ao lado, que usa a mesma rede de atendimento, não seguir ou não levar a sério — enfatiza Xavier.
O epidemiologista e gerente de risco do Hospital de Clínicas Ricardo Kuchenbecker avalia que hoje não faz mais sentido discutir se restrições à circulação são eficazes:
— Estamos em outro cenário em que a chegada das vacinas deu uma falsa sensação de segurança, levando à redução do distanciamento social e ao aumento da mobilidade, além de uma possível influência de novas variantes mais resistentes. Para essas situações, enquanto não começamos a vacinar mais rapidamente, o que seria fundamental, só uma retomada do distanciamento e da redução na mobilidade funcionam.