A convivência diária com superlotação, filas por vagas em leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) e o risco iminente de colapso na rede de saúde tornou esse cenário algo recorrente no Rio Grande do Sul nos últimos dias, acompanhando o pior momento da pandemia de covid-19 no país.
Autoridades e profissionais da saúde alertam que o Estado está enfrentado uma explosão de internações nos últimos dias, provocando medo e insegurança em pacientes e em profissionais de unidades de atendimento. Em municípios como Porto Alegre, se fala em um iminente colapso nos hospitais e demais instituições de saúde devido à velocidade das contaminações e do agravamento da doença. Na fila por uma vaga em UTI, pessoas infectadas pela covid-19 relatam temor, exaustão e falta de perspectiva para o tratamento de urgência.
A mudança de perfil dos pacientes, cada vez mais jovens, e a rapidez de piora dos quadros têm impressionado quem trabalha nos hospitais. No Moinhos de Vento, em Porto Alegre, foram abertas nos últimos dias duas alas de UTI dentro do setor de emergência. Em uma, com 10 vagas, só um paciente tinha mais de 60 anos, e a unidade funcionava com superlotação.
A situação é crítica também na rede pública. O número de internações mais que dobrou no último mês no Estado. A expectativa de abertura de novos leitos de alta complexidade poderá trazer algum alívio a esse cenário. Mas, no momento, o esgotamento já obriga os médicos a terem que decidir com frequência crescente sobre quais pacientes terão prioridade de atendimento.
— O perfil mudou, há muitos pacientes jovens, com deterioração do estado muito rápida. Às vezes chega na emergência num dia e no outro já está na UTI entubado. O que assusta é também o grau de contaminação, porque há 15 dias a situação estava praticamente sob controle — explica Antonio Kalil, diretor médico da Santa Casa de Porto Alegre.
A situação nas UTIs da Capital, em crescente agravamento desde 17 de fevereiro, alcançou na tarde dessa sexta-feira (26) o patamar de 98% dos leitos gerais ocupados, segundo informava o painel de monitoramento da prefeitura por volta das 15h30min. Havia 430 doentes graves com covid-19 em Porto Alegre, número que era de 408 na quinta-feira (25). São 47 internações a mais do que o teto de 383 vagas estipulado pela prefeitura da Capital no início do ano para que não houvesse colapso da estrutura de atendimento.
De acordo com um levantamento feito pela reportagem de GZH, ao menos cinco pessoas morreram à espera de um leito de terapia intensiva nos últimos dias no Estado. Os casos ocorreram na Região Metropolitana, no Litoral, no Norte e nos vales do Sinos e do Rio Pardo.
O diretor de regulação da Secretaria Estadual de Saúde (SES), Eduardo Elsade, afirma que o incremento da gravidade da covid-19 no Rio Grande do Sul tem sido observado pelo comitê técnico e que existe a possibilidade de o sistema hospitalar atingir o "estresse máximo" nos próximos dias.
— Até agora foram casos pontuais. O paciente que chega para atendimento em uma UPA, por exemplo, precisa ser estabilizado. Não é com todos que é possível fazer a transferência imediata. Em casos específicos podem ocorrer mudanças repentinas no quadro e o paciente ir a óbito, mas ainda não por falta de estrutura na rede — comentou.
Familiares relatam preocupação
Parentes de pacientes com covid-19 relatam grande preocupação enquanto enfrentam a espera por um leito hospitalar. É o caso do engenheiro de software Diego Garcia, 36, que até esta sexta-feira estava com a mãe, Jane Cardoso, 55, no Pronto Atendimento Cruzeiro do Sul. Na mesma data, o garçom Cléber Junior, 26, viu a mãe, Nádia José, 55, ser transferida para um hospital, depois de dias aguardando no Pronto Atendimento Bom Jesus. Veja os relatos:
"É horrível, a gente não sabe o que pode acontecer"
"Minha mãe trabalha como cuidadora em um abrigo do Estado. Na semana passada, ela apresentou alguns sintomas e fomos ao posto. Foi feito o teste, deu positivo e, como os sintomas eram leves na época, ela foi encaminhada para casa. Compramos um oxímetro para monitorar a saturação de oxigênio e estava sempre muito baixa.
Aí, o quadro foi se agravando, a respiração foi ficando mais pesada. Voltamos ao posto de saúde, novamente, encaminharam-na para casa. Então, ela começou a passar muito mal mesmo, acionamos o Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) e trouxeram a mãe aqui para o PA da Cruzeiro, faz seis dias que ela está aqui. Ela está acomodada em uma cama, mas soube que tem muito paciente covid no chão ou em poltronas.
No boletim de terça-feira (23), me informaram que ela estava estável, mas que precisa de um leito de UTI porque desenvolveu pneumonia e isso a deixa mais frágil e dependente de uma estrutura mais aparelhada.
Desde o sábado passado (20), tentamos ligar para os hospitais atrás de um leito, mas está muito difícil, está tudo lotado. Tentamos leitos em cidades próximas a Porto Alegre, mas também não conseguimos. A mãe tem plano de saúde, mas a busca não está fácil. Temos que aguardar, e essa espera maltrata demais. Vai fechar uma semana que estamos nessa aflição.
É horrível, porque a minha mãe está nesta situação e a gente não sabe o que pode acontecer, não sabemos se ela vai ou não conseguir transferência, e a agente se expõe ao ficar aqui no aguardo de notícias sobre o estado de saúde dela. Até poucos dias atrás, quem vinha até aqui era minha irmã, mas ela também acabou pegando covid. Como ela não pode sair de casa, eu passei a me deslocar, mas tenho medo. Por isso, uso máscara e esse escudo de acrílico no rosto. Mesmo assim, fico com receio de levar o vírus para casa.
Nos últimos dias, piorou a comunicação com o pessoal do PA. Desde quarta-feira, eu não consigo informações precisas sobre o estado de saúde da mãe. Aguardo umas três horas alguém aparecer e dar notícias, mas não rola... O máximo que consigo fazer é parar um enfermeiro na passada, mas sempre é uma promessa de que daqui a pouco darão informações. Mas o pessoal deve estar correndo muito lá dentro. Só na quinta-feira, por volta das 10h, chegaram umas cinco ambulâncias do Samu."
Diego Garcia, 36 anos, engenheiro de software, morador de Porto Alegre. Filho de Jane Cardoso, 55 anos. A reportagem conversou com ele na quarta-feira (24) e na sexta-feira (26).
Segundo a Coordenadoria Municipal de Urgência (CMU), está sendo avaliada uma forma mais efetiva de prestar informações aos familiares, ressaltando que essa dificuldade no momento se deve à sobrecarga dos servidores da unidade, que estão priorizando a atenção aos pacientes para o melhor tratamento possível. Com a restrição de acesso à recepção para evitar propagação de contágio, observando-se com rigor as regras de distanciamento, o guichê de informações ficou mais afastado do público. Conforme ela, se busca uma solução para amenizar a ansiedade dos familiares. Por ora, a rotina de informações aos familiares será cumprida por um médico ou enfermeiro que irá à recepção diariamente às 10h.
"Eu choro, mas tenho que me manter forte"
"Cheguei por volta das 7h30min. Faz mais de três horas que eu estou esperando para falar com a médica do (Pronto-Atendimento) Bom Jesus para me atualizar sobre como está o quadro de saúde da minha mãe e sobre a transferência dela para um leito de hospital. Na terça-feira (23), às 4h eu já estava na fila para saber dela e, em uma hora, consegui as informações de que precisava.
No turno da tarde, os enfermeiros até fizeram uma chamada de vídeo entre a mãe e eu. Deu para ver no rosto, na expressão dela a melhora em relação a como chegamos no posto. Mas, hoje (quarta-feira), está essa demora e não entendo o motivo, já que foi tão rápido da última vez.
A mãe chegou aqui mal na segunda-feira (22). Desde a semana passada, ela estava com muitas dores no corpo e febre. Na segunda-feira de manhã, a situação ficou grave e delicada, porque ela passou a apresentar dificuldades para respirar. Me desesperei quando vi que a mãe começou a ficar ofegante. Chegamos no PA às 17h e o atendimento dela só aconteceu depois das 21h. E isso porque eu fui lá e chamei por ajuda e insisti. Caso contrário, poderia ter levado mais tempo.
Ela passou pela triagem, foi examinada, fez o teste, positivou e já ficou lá dentro. Agora está aguardando transferência para um leito de UTI desde segunda. Venho aqui todos os dias para saber dela.
A última informação que tenho é de que ela está estável e que a respiração foi controlada. Mas a mãe precisa ficar no oxigênio, ela precisa ser internada, mas os hospitais estão todos cheios. E essa espera nos desestabiliza muito, ao mesmo tempo em que exige sobriedade. A situação é desesperadora. Eu choro, mas tenho que me manter forte. Porque, se eu passar para minha mãe que eu estou sofrendo, ela pode ficar mais debilitada ainda. Aqui, eu só tenho a ela e ela a mim. O meu outro irmão mora em Recife, nossa cidade natal."
A reportagem contatou o PA da Bom Jesus e foi informada de que, após quatro dias, na manhã desta sexta-feira, dona Nádia havia sido transferida para um leito de hospital.
Cléber Junior, 26 anos, garçom, morador de Porto Alegre. Filho de Nádia José, 55 anos. A reportagem conversou com Cléber na quarta-feira (24).