Enquanto o Brasil corre de um lado para outro em busca de vacinas contra a covid-19, ainda sem prazo certo para começar a distribuí-las, em Israel o processo de imunização avança no ritmo mais acelerado do mundo.
Os dados mais recentes indicam que o país já distribuiu doses a 14% da população — o equivalente a mais de 1,2 milhão de pessoas atendidas até o domingo (3) em apenas duas semanas de campanha. Para atingir esse resultado, o país combinou negociação precoce com laboratórios, alto investimento para garantir prioridade de entrega, mobilização nacional e organização logística. Parte das lições ainda pode ser aproveitada pelo Brasil, que desperdiçou a oportunidade de firmar contratos em tempo hábil com diferentes fabricantes.
Quando ainda não havia certeza sobre a eficácia dos imunizantes, na metade do ano passado Israel já tinha acordos encaminhados com empresas como Pfizer e Moderna para garantir que estaria entre as primeiras nações a receber os produtos. Os valores dos contratos não foram divulgados oficialmente, mas se acredita que o país de 9 milhões de habitantes tenha aceitado pagar um valor mais alto em troca da prioridade na fila. Segundo órgãos internacionais de imprensa, somente esses dois fornecedores se comprometeram a embarcar cerca de 14 milhões de doses.
— Em Israel, entenderam muito cedo que a vacinação não tem relação com política de direita ou de esquerda, mas é uma questão de saúde pública. Por isso, desde o início, deram prioridade à aquisição e, depois, à distribuição das vacinas — analisa a imunologista Cristina Bonorino, professora titular da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e membro do comitê científico da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI).
Para distribuir os estoques em tempo recorde, atualmente em um ritmo de 150 mil pessoas contempladas por dia, o cirurgião gaúcho residente em Israel Milton Saute afirma que foi utilizada a estrutura de saúde pública do país. Esse sistema é dividido em quatro organizações subsidiárias, que cadastram todos os cidadãos. O perfil tecnológico de Israel ajudou: as entidades enviam mensagens de celular convocando as pessoas a receber as doses em postos de saúde ou hospitais previamente preparados para o esforço concentrado.
— Você recebe uma mensagem dizendo a hora e o local onde deverá tomar a vacina. Depois que toma a primeira dose, como eu já tomei, a segunda fica automaticamente reservada para você — conta Saute.
O engajamento da população foi estimulado pelo primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, que fez questão de tomar a primeira injeção disponível em Israel para "dar o exemplo". Autoridades religiosas se pronunciaram em favor da campanha de imunização e reduziram eventuais resistências entre a comunidade judaica mais ortodoxa.
— Há resistência, ainda, entre a população árabe de Israel, que corresponde a cerca de um quinto do país. Mas a maior parte da sociedade entendeu a importância de se vacinar — diz Saute.
O Brasil ainda poderia adotar como lições de Israel a definição (ainda que tardia) da vacinação como prioridade nacional e promover campanhas massivas de conscientização. Mas o tempo perdido para firmar acordos de entrega com diferentes fabricantes é muito difícil de ser recuperado.
— O país nunca entrou de fato na corrida pela vacina, então agora estamos em uma situação difícil. Mas é fundamental começar a vacinação o quanto antes porque, quanto mais tempo um vírus circula, mais chance tem de sofrer mutações que podem deixá-lo mais transmissível ou virulento — diz a imunologista da UFCSPA.
A receita israelense
Como o país assumiu a dianteira mundial na vacinação contra a covid-19:
Negociação precoce
Israel foi um dos primeiros países do mundo a entrar em contato com os laboratórios e negociar antecipadamente a aquisição das vacinas, ainda na primeira metade de 2020. Segundo informações da agência de notícias Reuters, o país acertou com a Moderna ainda em junho a compra de 4 milhões de doses, volume depois ampliado para 6 milhões.
Aposta em mais de um fornecedor
Israel não depositou suas fichas em uma única fonte. Além de ter negociado com a Moderna, chegou a um acordo de porte semelhante com a Pfizer — que se comprometeu a entregar outras 8 milhões de doses em poucos meses. O país negociou com outros laboratórios, como o AstraZeneca, além de buscar criar um imunizante próprio, ainda em desenvolvimento.
Prioridade de investimento
Os dados financeiros das negociações de Israel com os laboratórios não foram divulgados de forma oficial, mas o país não poupou recursos para garantir prioridade no recebimento das doses. A avaliação do governo foi de que valeria a pena pagar mais caro do que outros países para receber primeiro as vacinas levando em conta que uma retomada econômica precoce compensaria esse gasto adicional.
Liderança engajada
Sob um ambiente político tumultuado e diante de suspeitas de corrupção, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu transformou a luta pela imunização em massa na prioridade de sua gestão. Além de mobilizar os esforços do país para garantir as doses necessárias, pessoalmente defendeu a importância de todo cidadão se vacinar e procurou dar o exemplo, tomando a vacina na frente das câmeras.
Campanha de conscientização
Governo, autoridades religiosas e a comunidade científica procuraram esclarecer a população sobre a importância da vacinação pelos meios de comunicação. Isso incluiu mensagens voltadas especificamente à minoria árabe do país, que se mostrava menos favorável à imunização. Netanyahu visitou regiões de população árabe para tentar aumentar o engajamento.
Logística e tecnologia
Israel tem um sistema público de saúde dividido em quatro instituições diferentes. Todo cidadão é cadastrado em uma delas, que têm sido utilizadas como referência para a aplicação das doses. Os primeiros selecionados recebem mensagens pelo celular avisando da vacinação, com data e local. Essa estrutura tem sido fundamental para dar ritmo ao processo de imunização, que chega a 150 mil pessoas por dia em uma população de 9 milhões.