A vacinação em massa contra a covid-19 no Brasil enfrenta um novo obstáculo: a falta de matéria-prima da China para fabricar doses localmente em meio a um complicado xadrez geopolítico. Analistas veem como principal causa para o atraso no envio do ingrediente uma resposta do governo chinês à agressiva e, por vezes, preconceituosa política externa da gestão de Jair Bolsonaro frente ao país asiático. O risco do embate diplomático é inviabilizar a estratégia de vacinação brasileira.
A matéria-prima essencial para a fabricação das vacinas contra o coronavírus no Instituto Butantan, responsável pela CoronaVac, e na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), produtora da vacina de Oxford, está parada na China: o ingrediente farmacêutico ativo (IFA). Nesta terça-feira (19), a Fiocruz informou que a previsão de entrega das doses produzidas no Brasil em fevereiro não se concretizará: ficará para março. A mudança deve dificultar ainda mais a execução do plano nacional de imunização contra a covid-19.
Sem IFA, não há como produzir vacina no Brasil e, sem fabricação local, o governo precisará importar doses de outras nações em lotes esporádicos e a conta-gotas, em nível insuficiente para manter o ritmo adequado da vacinação. Isso porque, até agora, o Ministério da Saúde só firmou acordo com a Sinovac e a AstraZeneca – com a Pfizer, há apenas uma intenção de compra, sem garantia das doses.
— Se não tivermos vacinação para a maior parte da população ou se ela vier aos pouquinhos, corremos o risco de manter o atual nível de pandemia por um período muito grande. Uma parcela pequena de vacinados impacta pouco na curva. Se apenas em janeiro de 2021 o governo comprar de outros laboratórios, nosso pedido será o último na fila. Ainda assim, o Brasil tem que entrar na fila, uma hora chegará nossa vez — resume Raquel Stucchi, professora de Infectologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro do Comitê de Imunizações da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).
A dependência da boa vontade de laboratórios e de países estrangeiros é consequência de o governo não ter investido em produzir uma vacina 100% brasileira, apesar de ter capacidade para tal, avalia a professora de Imunologia na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) Cristina Bonorino. Ela cita que a vacina contra a febre amarela, produzida pelo Butantan, é exportada para a América Latina.
— Dado esse dano, é preciso pressionar para conseguir mais rapidamente o princípio ativo para as fábricas do Brasil produzirem o máximo possível de doses no menor tempo disponível. E precisa negociar com as outras empresas que tenham vacinas aprovadas para comprar o máximo de doses possíveis e distribuí-las. Não vejo muito disso acontecendo, essa é a minha preocupação — diz a imunologista.
Especialistas em relações internacionais apontam que a retenção do IFA na China é uma resposta ao isolamento do Brasil na geopolítica internacional – movimento sinalizado também pela negativa do governo da Índia em enviar 2 milhões de doses da vacina de Oxford à Fiocruz para dar preferência a nações vizinhas.
— Tanto a questão do Instituto Serum quanto do princípio ativo chinês mostram que a postura da diplomacia brasileira sob o governo Bolsonaro é de crescente isolamento com o mundo e de aproximação apenas com a administração (do presidente norte-americano Donald) Trump. Costuma ser um bom princípio você não fustigar o menino mais forte da sala. Dá pra culpar a China por ter uma postura mais dura? Não é agradável, mas quem planta vento colhe tempestade. Ter com o principal parceiro comercial uma postura agressiva, em alguns aspectos resvalando no insulto, é, no mínimo, descuidado — avalia Livio Ribeiro, pesquisador sênior da área de economia aplicada do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
A China é alvo recorrente de críticas do presidente Jair Bolsonaro e de seu entorno. O filho Eduardo Bolsonaro (PSL) já culpou o país asiático pela pandemia em declarações sinófobas, ao que o embaixador da China no Brasil respondeu com veemência e o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, em seguida afirmou que o diplomata deveria pedir desculpas ao deputado.
O próprio Bolsonaro já criticou a China e a Sinovac em outubro. Ele declarou que “a (vacina) da China, lamentavelmente, já existe um descrédito muito grande por parte da população, até porque, como dizem, esse vírus teria nascido lá”.
Na segunda-feira (18), o governador de São Paulo, João Doria, afirmou que, se o presidente “parar de falar mal da China e seus filhos pararem de falar mal da China, isso já ajuda bastante”.
— Os insumos da vacina da AstraZeneca são produzidos na China. Os da vacina do Butantan são produzidos na China. E são as duas únicas vacinas aprovadas pela Anvisa. Pelo menos se não atrapalhar, já é uma ajuda — afirmou Doria.
Além de ter menor simpatia com o Brasil após os embates, a China também é conduzida, por interesses estratégicos, a dar preferência a outras nações no envio da matéria-prima, destaca Gabriel Adam, professor de relações internacionais na Escola Superior de Marketing (ESPM) de Porto Alegre.
— A relação com a China está estremecida pelas declarações do presidente Bolsonaro, de seus filhos e do ministro das Relações Exteriores, o que, se não criou, está dificultando o processo de o governo brasileiro de receber os insumos de que precisa. Mas o Brasil não é dos países mais relevantes no sistema internacional. Não só porque não produz, mas também porque países fazem o cálculo na hora de entregar insumos. A China ensaia uma aproximação com a Europa e observa o (presidente eleito dos Estados Unidos, Joe) Biden. Em um cenário como esse, a China faz mais negócio em aplicar insumos em países europeus — diz Adam.
A situação da CoronaVac
Hoje, o Butantan tem matéria-prima suficiente para produzir a CoronaVac somente em janeiro. Conforme a assessoria de imprensa da instituição, o repasse de mais IFA já foi liberado pela Sinovac, mas a carga ainda não saiu porque falta o aval do governo chinês.
O presidente do Butantan, Dimas Covas, afirmou que “existe uma certa dificuldade na liberação, mas esperamos que isso seja resolvido ainda esta semana. Com a demonstração da eficácia e o registro, o Brasil passa a ser o maior parceiro da Sinovac no mundo, e passa a ser também, neste momento, o maior parceiro da China em termos de vacina”.
Nesta terça-feira (19), as negociações avançaram, e o governo de São Paulo espera receber na semana que vem insumos suficientes para produzir 5,5 milhões de doses da CoronaVac – o que se somaria às 6 milhões em distribuição nesta semana pelo Brasil.
No domingo (17), o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, informou que a China atrasa a entrega da matéria-prima e garantiu que o governo federal estava atuando para resolver a questão. A Embaixada da China no Brasil não respondeu ao pedido de GZH para comentar o assunto.
— A China não tem dado celeridade aos documentos de exportação necessários para que o IFA saia e venha para o Brasil. Estamos fazendo movimentos fortes, no nível diplomático, para encontrar onde está essa resistência e resolver o problema — disse Pazuello.
A situação da vacina de Oxford
No caso da vacina de Oxford, a Fiocruz previa receber a matéria-prima em dezembro, mas o mês passou sem que isso ocorresse. A projeção passou para janeiro, mas o prazo também não se cumprirá. Nesta terça-feira (19), a Fiocruz informou que o envio do material pela China atrasou. Por isso, adiou de fevereiro para março a previsão de entrega das primeiras doses da vacina Oxford/AstraZeneca que serão produzidas no Brasil. O envio é de responsabilidade legal da AstraZeneca, mas a fabricação será feita pela indústria chinesa WuXi.
O calendário inicial de produção da vacina de Oxford previa começar a fabricar 1 milhão de doses na quarta-feira (20), o que já não poderá ser cumprido.
A AstraZeneca afirma, em nota, que “continua trabalhando para liberar os lotes planejados de IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo) para a vacina o mais rápido possível”. O caso chegou ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, que marcou audiência com o embaixador da China, Yang Wanming.
— O presidente da Câmara ter que chamar o embaixador da China para desenrolar um problema é um indicador claro de que o problema está concentrado de um lado. Essa função não deveria ser feita pelo presidente da Câmara, mas pelo governo — reflete o pesquisador Livio Ribeiro, da FGV.
Referente aos insumos da Fiocruz, o Ministério das Relações Exteriores afirmou, em nota, que o governo brasileiro permanece “em contato com as autoridades chinesas e com a empresa responsável pelo fornecimento dos insumos para identificar a melhor maneira de resolver a questão”.
A chancelaria brasileira ainda diz que “permanece em estreito contato – com sentido de prioridade e urgência – com as autoridades indianas, com vistas à pronta concretização da importação de 2 milhões de doses da vacina da AstraZeneca/Oxford contra a covid-19”. Conclui dizendo que as negociações estão sendo conduzidas “por meio dos canais diplomáticos apropriados, em diferentes níveis”. A compra da vacina pronta na Índia é uma das alternativas para dar prosseguimento à vacinação no Brasil.