- Pandemia de covid-19 no Rio Grande do Sul em novembro está pior do que no inverno em casos e internações em leitos clínicos
- Na última semana, há, proporcionalmente, mais casos novos no Estado do que em Espanha, França, Bélgica e Reino Unido
- No RS, UTIs tinham apenas seis pessoas a menos internadas nesta segunda-feira do que no pico, em agosto, quando havia 958 pacientes em estado grave
Quando a covid-19 era desconhecida, médicos cogitavam que o vírus perderia força no calor. A realidade, contudo, se mostrou diferente da teoria: em nenhum momento desta pandemia os gaúchos se infectaram e internaram em hospitais tanto quanto em novembro, mostram dados da Secretaria Estadual da Saúde (SES) analisados por GZH. Analistas afirmam, em consenso, que o Rio Grande do Sul vive uma segunda onda – pior, inclusive, do que o pico de agosto.
Novembro teve 65,4 mil novos casos de coronavírus, mais do que outubro e quase o mesmo de agosto, pico da pandemia no Estado, quando 66,2 mil pessoas se infectaram.
O problema é que o ritmo de contágio agora está pior: a média móvel de infecções a partir da segunda semana de novembro é, diariamente, maior do que em agosto, como mostra o gráfico a seguir.
Em termos proporcionais e levando em conta o tamanho da população, mais pessoas se contaminaram na última semana no Rio Grande do Sul do que na Espanha, na França, na Bélgica e no Reino Unido, que enfrentam segunda onda e impõem fortes restrições de circulação.
— É inequívoco que há um recrudescimento. O número de novos casos é o maior de toda a epidemia e a ocupação das UTIs está voltando ao pico. A quebra que houve na curva (após fim do inverno) reduziu a doença à metade do que estava no pico. Quando pensamos que entraríamos em uma descida, a curva voltou a subir — diz Jair Ferreira, professor de Epidemiologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), médico do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e um dos mais respeitados epidemiologistas do Estado.
As mortes, último indicador a sofrer alteração, não chegaram a aumentar – estão estáveis. O fenômeno, também ocorrido na segunda onda de países europeus, reflete a grande proporção de infectados jovens e o aprendizado das equipes de saúde ao longo do ano. Ainda assim, destacam médicos, se as infecções seguirem aumentando, os óbitos crescerão em algum momento.
— Agora, está pegando bem mais jovens, que se expõem mais e têm menor mortalidade. Demora mais para aparecer a mortalidade secundária ou terciária, quando eles transmitem para outros familiares. Mas, se seguir como está agora, haverá mais mortes. Ainda que haja mais conhecimento sobre a doença, se começar a faltar leito, a mortalidade sobe muito por falta de atendimento — alerta a médica Lucia Pellanda, professora de Epidemiologia e reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
A tese de especialistas encontra respaldo nos dados: jovens e adultos de até 40 anos se infectaram mais em novembro do que em qualquer momento do inverno no Rio Grande do Sul. Enquanto isso, idosos com mais de 60 anos mantêm proporção de contaminação próxima à de agosto.
Ocupação de leitos clínicos no RS cresce 28% em duas semanas
O uso de leitos clínicos (casos menos graves) por coronavírus já é o maior da pandemia no Rio Grande do Sul. A lotação da ala é vista como preditivo para, nas próximas semanas, uma piora nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs).
O pico de uso de leitos clínicos por pacientes com confirmação ou suspeita de coronavírus aconteceu em agosto, com 1.814 internados. Na segunda-feira passada (30), havia 1.872 pacientes – um aumento de 28% na comparação com apenas duas semanas atrás.
Em algumas regiões, o salto na ocupação hospitalar de leitos de enfermaria é avassalador – na Serra, houve aumento de 62% nas internações na segunda-feira, frente à segunda-feira de duas semanas atrás. No Centro-Oeste gaúcho, foi de 53,2%. Na Região Metropolitana, 21%. Na Região Missioneira e nos Vales, a ocupação das UTIs já ultrapassou o pico de agosto – na primeira, está a ponto de entrar na bandeira preta no sistema de distanciamento controlado do Estado, que significa situação gravíssima. Nas outras regiões, a marca do inverno da covid-19 está prestes a ser ultrapassada.
Já as UTIs não estão mais lotadas em novembro do que no inverno por pouco. Como mostra o gráfico a seguir, na segunda-feira havia apenas seis internados a menos do que no pico do inverno, em 16 de agosto, quando 958 pessoas confirmadas ou suspeitas para coronavírus estavam em instituições de saúde. O aumento de segunda é de 14% frente à segunda-feira retrasada (16).
Hoje, o Estado está com 80,7% dos leitos em uso, marca preocupante. No total, o Rio Grande do Sul tem 2,5 mil vagas de leitos de UTI – o governo estadual mais do que dobrou o número de vagas na rede pública em comparação a antes da pandemia.
Outro indicador analisado pelo Palácio Piratini e que também agrava o cenário é a proporção de leitos de UTI livres para cada vaga ocupada. Ter um número mais alto significa contar com margem de manobra para abrir uma vaga a um paciente em caso grave que necessite de internação urgente.
No domingo, havia 0,66 leito livre para cada vaga ocupada – duas semanas atrás, era 0,97, um indicador que recebeu a bandeira preta na avaliação do Palácio Piratini. Em novembro, no melhor momento da pandemia após o pico, a proporção chegou a ser de 1,45.
— A segunda onda parece estar começando nos Estados do Sul porque as aberturas foram realizadas em momento semelhante ao resto do país. Porém, os níveis da pandemia no Brasil começaram a cair antes em outras regiões e mais tardiamente por aqui. Quando abrimos, estávamos com taxas de transmissão mais elevadas do que no resto do país, e as autoridades passaram a mensagem de que estava tudo seguro para uma retomada, quando não estava — analisa Alexandre Zavascki, médico e professor de Infectologia na UFRGS que pede mais restrições às atividades para conter o avanço do vírus.
Risco de sobrecarga nos hospitais
A nomenclatura “segunda onda” para a piora da pandemia é ressalvada por alguns especialistas – ainda que todos concordem que há uma piora no Rio Grande do Sul.
Na prática, o termo se aplica à Europa, onde o lockdown reduziu a curva de infecções a patamares mínimos e depois, no verão, a pandemia voltou a crescer na região. Por aqui, a decisão de conviver com o vírus enquanto comércio e outras atividades eram liberadas reduziu o número de novos casos, mas não a ponto de acabar com a “primeira onda”.
Caso o cenário continue grave como agora, o risco é de sobrecarga nos hospitais e falta de atendimento a todas as pessoas – algo que, até agora, não ocorreu no Rio Grande do Sul.
— Quando as flexibilizações aumentaram e as pessoas começaram cada vez mais a manter uma rotina praticamente normal, sem usar máscara e desrespeitando o distanciamento social, o vírus que já estava ativo acabou com potencial maior para se disseminar. Caminhamos para um crescimento exponencial, e aí fica mais difícil de controlarmos — analisa Juliane Fleck, professora do mestrado em Virologia da Feevale.
A boa notícia é que a piora da pandemia é reversível. O governo do Estado voltou a impor restrições aos gaúchos, no esforço de conscientizar sobre os riscos, enquanto busca evitar prejuízos ainda maiores à economia. A partir de agora, a tranquilidade do verão depende de que cada gaúcho faça a sua parte.
— Não precisa ter um fechamento completo de tudo, mas a população inteira tem que cuidar. Não precisa ficar só em casa, mas também não precisa agir normalmente na rua. Todos devem usar máscara sempre que saírem e evitar aglomerações — destaca a médica epidemiologista Lucia Pellanda.