À frente da pesquisa de uma das vacinas mais promissoras contra a covid-19 no Brasil, Ricardo Palacios, 47 anos, aprendeu a driblar o relógio para concluir, em tempo recorde, o maior desafio de suas mais de duas décadas de carreira. Pelo fuso horário de 11 horas com a China, acostumou-se às reuniões que invadem a madrugada.
– Fazemos encontros às 3h da manhã. Nos horários mais inusitados possíveis – conta o gerente médico de Ensaios Clínicos do Instituto Butantan, em São Paulo.
Colombiano radicado no Brasil, Palacios lidera a terceira e última etapa de testes da substância desenvolvida pela empresa asiática Sinovac, que, no Brasil, ficou conhecida como vacina chinesa. Doses são aplicadas, desde o final de julho, em 9 mil voluntários espalhados em 12 instituições do país – entre elas, o Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em Porto Alegre.
Como surgiu a parceria entre a empresa Sinovac e o Instituto Butantan?
No início da pandemia, o Butantan deu início à procura de potenciais parceiros de diferentes lugares do mundo. Fomos atrás de companhias chinesas, até porque a pandemia começou por lá. Fazia sentido que soubessem um pouco mais sobre o que estava acontecendo. O Butantan pertence a uma rede internacional de cientistas e, por isso, nos comunicamos com empresas de diferentes países, como Irlanda, Índia e, claro, China. Entre elas, está a Sinovac. Também, por coincidência, em agosto do ano passado, o Estado de São Paulo fez uma missão à China para visitar potenciais parceiros, por motivos diversos – à época, nem se sabia de covid-19 – e esteve na Sinovac. Então, já durante a pandemia, conversamos com eles, e o resultado que apresentaram foi impressionante. Muito rapidamente, conseguiram uma vacina que demonstrou resultados interessantes – naquele momento, recém haviam mostrado resultados em primatas. A partir disso, trabalhamos na parceria, que acabou cristalizada.
Há enorme curiosidade sobre esse acordo. Por que os termos são sigilosos?
Isso é necessário porque existem informações protegidas por direitos de patente e propriedade intelectual. São questões que não pertencem ao Butantan, mas à Sinovac, uma companhia privada com ações na bolsa de Nasdaq, nos Estados Unidos. Temos de respeitar determinadas normas, mas é bem parecido quando trabalhamos com qualquer outro parceiro privado internacional. Há cuidados e precauções que temos de respeitar. Essa é a maneira de se trabalhar no ramo farmacêutico.
Por que o Hospital São Lucas da PUCRS foi escolhido para o ensaio clínico?
A seleção dos centros de pesquisa está fundamentada na epidemiologia. Prevíamos que a curva (de casos) no Rio Grande do Sul aumentaria, e procuramos instituições que tinham experiência prévia, por causa do pouco tempo para criar o estudo clínico. O São Lucas havia trabalhado conosco no estudo da dengue. Então, o conhecimento do hospital e da qualidade da equipe, conduzida pelo professor Fabiano Ramos (chefe do Serviço de Infectologia do hospital), nos deixou pouquíssimas dúvidas na escolha do São Lucas como um dos centros de pesquisa.
Em geral, os países onde as respostas foram mais coordenadas entre as instâncias de governo e sociedade foram melhor sucedidos. Não apenas o Brasil, mas outros países da América Latina, o México, os EUA estão gastando muito tempo em disputas que não fazem sentido. No universo científico, estamos trabalhando muito mais harmonicamente. Gostaria que o mesmo acontecesse nas instâncias políticas.
Se a vacina se comprovar eficiente e segura, o Butantan poderá produzi-la sem pagar nada à Sinovac?
A parceria envolve diferentes aspectos, e um deles é o desenvolvimento clínico conjunto. Diferentemente de outras aproximações, o Butantan está liderando a fase 3, que foi inclusive escrita em português. Desenhamos e estamos liderando o projeto. Também há acordos de transferência de tecnologia, começando com algo um pouco mais simples, que é a finalização da planta piloto (laboratório onde a vacina será manipulada), e terminando com algo bem mais complexo, que é a produção da matéria-prima. A preparação da parte inicial já começou. Temos um trabalho intenso com os colegas da Sinovac para entender como fazer a planta piloto para essa finalidade.
Essa parceria coloca o Brasil à frente de outros países para a distribuição da vacina à população?
Com certeza. Há um ponto que as pessoas não percebem, mas existem poucas fábricas de vacina na região. Apenas três países da América Latina possuem – México, Brasil e Argentina. Desses países, o Brasil é o que realmente têm grande capacidade industrial, e o Butantan é um desses principais locais. Temos uma responsabilidade não só com o Brasil, mas com toda a América Latina. Estamos cientes disso e trabalhamos para que os benefícios dessa vacina sejam estendidos a toda essa região.
Então, o instituto Butantan também irá distribuir doses aos países vizinhos?
Sim. Temos dialogado com representantes de organizações bilaterais, porque há grande preocupação para a distribuição em toda a região, e não apenas para o Brasil. O Butantan está entre os potenciais parceiros para dar acesso à vacina para a região. Estamos discutindo isso paralelamente.
A vacina chinesa usa um método bastante convencional, de vírus inativado, enquanto outras empresas testam procedimentos inéditos. Isso faz da substância desenvolvida pela Sinovac uma das mais promissoras?
Sem dúvida, é muito promissora. Essa tecnologia apresenta muitas vantagens. É muito segura e reconhecida pela produção de anticorpos, que é justamente a resposta imune que queremos. Em outras vacinas que produzimos, análogas a essa, conseguimos uma resposta imune duradoura. E, por usar um vírus inativado, causa pouquíssimas reações nas pessoas. Por isso, pode ser utilizada em pessoas um pouco mais enfraquecidas, que tenham alguma condição de base, de forma tranquila. É uma vacina com a qual o organismo lida muito bem, mesmo nas pessoas que têm alguma doença de base. Isso é uma grande vantagem na comparação às outras.
Essa vacina necessita de duas doses, no intervalo de duas semanas. Isso não pode diminuir a adesão da população?
É uma fórmula de estimular o sistema imune usada em muitas outras vacinas. Sabemos que vacinas desse tipo são eficazes e dão uma boa resposta tendo duas doses. Acho que, em outras vacinas, existem mais interrogações. A maioria das companhias está se inclinando por duas doses, pouquíssimas estão apostando em apenas uma. É claro, são diferentes estratégias, mas acho que esse é um caminho mais seguro. É um caminho que conhecemos e que funciona bem. Não estamos arriscando com algo que ainda temos dúvidas.
Qual sua expectativa para que tenhamos o primeiro brasileiro vacinado?
O resultado do estudo clínico depende da epidemiologia. Especialmente nas áreas onde estão sendo feitos os estudos clínicos, dependemos que o vírus continue evoluindo. Infelizmente, o Brasil está numa tendência de estabilização da pandemia em um patamar bastante alto. Se essa tendência se manter, há uma probabilidade razoável de termos informações preliminares de eficácia ainda neste ano. Então, poderíamos submeter essas informações à agência regulatória, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), para obtermos uma licença emergencial. É a estimativa que temos, conforme as previsões epidemiológicas atuais. Se as previsões mudarem, talvez precisemos esperar um pouco mais.
A vacina não é uma bala de prata. Será uma proteção contra a doença, e não contra a infecção. Isso quer dizer que vamos continuar com o coronavírus, a menos que se descubra uma tecnologia que consiga impedir a infecção – o mais provável é que isso não aconteça. Estamos esperando uma solução mágica. Não será assim.
Então, é uma situação dicotômica: quanto mais aguda estiver a pandemia, mais rápido haverá o resultado dos testes?
É exatamente isso. Para sabermos se a vacina protege, as pessoas precisam estar expostas. Se não estiverem expostas, nunca vamos saber se protege. E, quanto mais expostas estiverem, mais rápido podemos verificar se protege.
Em qual mês o senhor calcula que o Brasil poderia dar início à vacinação? O país está preparado em termos de logística?
Imaginamos que será análogo à vacina da influenza. O Sistema Único de Saúde (SUS) vacina um terço da população a cada ano contra a influenza. Tem ampla experiência. Inicia-se por alguns grupos, escalonados. Isso seria previsível também para essa vacina, inclusive com grupos parecidos. A diferença é que a covid-19, diferentemente da influenza, não acomete preferencialmente crianças, então, elas não estariam entre os grupos prioritários. O início deverá ser por profissionais de saúde e pessoas com doença de base. A definição, claro, cabe ao Programa Nacional de Imunizações, e a logística, às secretarias estaduais e municipais de Saúde, que têm ampla experiência na influenza e também em muitas outras vacinas. Estamos muito confiantes. Temos um dos melhores programas de imunizações do mundo – e é gratuito.
Mas quando?
Temos a expectativa de que seja no primeiro trimestre de 2021. Acho difícil me aventurar em dizer um mês em particular, até porque dependerá da Anvisa, se estará satisfeita com as informações... Muitos fatores precisam ser colocados à mesa. Infelizmente, não posso ser mais preciso.
A Rússia acaba de aprovar a regulação da primeira vacina contra a covid-19, mesmo sem a conclusão dos ensaios clínicos. Em julho, os Estados Unidos compraram 100 milhões de doses da vacina da Pfizer, também antes de comprovada sua eficácia. Está estabelecida uma Guerra Fria em torno da imunização?
São tantos interesses em diferentes campos que é até difícil mensurar a tomada de algumas decisões, como a incorporação de uma vacina como propõe a Rússia. Isso seria inaceitável na maior parte dos países, inclusive no Brasil, onde a agência regulatória é, felizmente, bastante rigorosa. Influências políticas não atingem a Anvisa, que continua sendo uma parte técnica para proteger a população. Há uma preocupação enorme em relação à distribuição de vacinas e a essas movimentações de corrida de compras, que restringem o acesso para o mundo. O Butantan, como uma instituição pública, vê esses movimentos com muita preocupação. A pandemia é um problema global, não um problema de saúde de um país ou outro. Tem de ser controlada no mundo. O vírus desconhece fronteiras, não precisa de visto para atravessá-las. Até por conta disso, participamos ativamente das discussões internacionais do Covax, um mecanismo que procura dar acesso da vacina a todos os países. É uma responsabilidade que temos como instituição de saúde pública.
Como o senhor avalia a condução da pandemia no Brasil?
Gostaria de não me restringir ao Brasil. Em geral, os países onde as respostas foram mais coordenadas entre as diferentes instâncias de governo e sociedade foram muito melhor sucedidos do que nos países onde houve discursos dissonantes. Dente esses países, infelizmente, está o Brasil. E os Estados Unidos, também. É fácil ver como nos países onde houve descoordenação entre os diferentes níveis de organização há mais dificuldades para controlar a pandemia. Por outro lado, ainda é possível corrigir o rumo. A Inglaterra, por exemplo, estava indo por um rumo bastante complicado, mas se corrigiu, harmonizou os trabalhos e conseguiu, de maneira bastante razoável, controlar a pandemia. Todos os países da Europa ainda estão lutando para manter nesse nível baixo, que é difícil de sustentar. Não está fácil para nenhum país. Aqui, estamos perdendo uma oportunidade. E não apenas o Brasil, mas outros países da América Latina, o México e os Estados Unidos. Estão gastando muito tempo em disputas que não fazem sentido. Seria muito mais valioso se reuníssemos esforços. No universo científico, estamos trabalhando muito mais harmonicamente, temos uma comunicação muito maior. Falo com meus colegas da Universidade de Oxford sem problema algum. É muito tranquilo. Gostaria que a mesma prática acontecesse entre as instâncias políticas dentro do país.
Há disputa política mesmo no campo das vacinas. O presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, disse apostar na vacina de Oxford e ironizou a chinesa.
Precisamos, como cientistas, de apoio de todas as instâncias da sociedade e do governo para desenvolver a vacina e criar um estudo cientificamente rigoroso. Esse tipo de distração não está no nosso foco, porque nosso foco tem de ser a vacina. Estamos trabalhando nisso. Não reparamos nesses episódios que tiram nosso foco. E, claro, todas as vezes que alguém oferece ajuda, aceitamos. Gostaríamos de mais ajuda efetiva.
A vacina será a única maneira de sair da crise?
Infelizmente, acho que sim. Não temos outra opção neste momento. Mesmo em países que vinham controlando a pandemia, algo foge do controle e começam a aparecer casos. Só uma vacina conseguirá controlar a pandemia.
Mas diretor da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse, recentemente, que talvez nunca exista uma vacina contra a covid-19.
Acho que foi um chamado de atenção para que o mundo entenda algumas particularidades. A vacina não é uma bala de prata. Essa expressão tem sido usada para dar a entender que não podemos esperar que a vacina resolva todos os problemas da covid-19 de forma mágica, rapidamente. Será uma proteção contra a doença, e não contra a infecção. Isso quer dizer que vamos continuar com o coronavírus, a menos que se descubra uma tecnologia que consiga impedir a infecção – o mais provável é que isso não aconteça. Teremos de conviver com ele, e será como acontece com outras doenças, nas quais o agente causador continua vivendo conosco. Mas esperamos que, com a vacina, as pessoas não adoeçam. Isso seria bom o suficiente. Foi um chamado da OMS para que a sociedade entenda isso. Não estamos esperando uma solução mágica. Não será assim. Esperamos que a covid-19 se torne uma doença controlada, que poderá aparecer novamente, assim como muitas doenças que, às vezes, reaparecem.
O Sistema Único de Saúde (SUS) vacina um terço da população a cada ano contra a influenza. Tem ampla experiência. Inicia-se por alguns grupos, escalonados. Isso seria previsível também para essa vacina, inclusive com grupos parecidos.
Como está sua rotina desde o início da pesquisa?
Desde maio, quando começamos a trabalhar mais continuamente com a Sinovac, acontece uma situação engraçada. Escrevemos para eles, e eles estão dormindo. Ninguém responde. Do contrário, é a mesma coisa. Então, terminamos fazendo encontros às 3h da manhã. Nos horários mais inusitados possíveis. Finais de semana não existem. Acaba-se perdendo todas essas fronteiras de trabalho, de dia, noite, enfim. Não só eu, mas toda a equipe. Estamos fazendo o possível e o impossível, porque sabemos da responsabilidade. E temos encontrado muita receptividade e apoio, das áreas jurídicas e administrativas do Butantan, das instituições parceiras, de fornecedores… Tudo em tempo recorde. Nunca imaginamos que fôssemos conseguir fazer tudo tão rápido. E também dos parceiros internacionais. Há um esforço muito importante entre os cientistas. Apesar das mazelas da humanidade, tenho a fortuna de ter visto uma parte muito positiva da humanidade, de colaboração mútua.
O desenvolvimento dessa vacina está sendo o maior desafio de sua carreira?
Sim. Não só para mim, mas para todos os cientistas que estão trabalhando nisso. E para a sociedade em geral também. Nunca tínhamos enfrentado algo dessa magnitude. Na história recente, o único precedente foi a gripe espanhola, há 102 anos. Essa geração nunca viveu um desafio desse tamanho. Por isso, sentimos a responsabilidade de atender à expectativa da sociedade.
O senhor gostaria de deixar alguma mensagem à população?
Eu sei que essa rotina está cansativa, mas temos de seguir nos cuidando. Não se esqueçam disso.