Moradora de Santa Maria, a fisioterapeuta Manoela Pinto Rios, 25 anos, está em Manaus, no Amazonas, desde o início de maio. Ela integra uma das equipes de saúde do programa O Brasil Conta Comigo, do Ministério da Saúde, que leva profissionais para atuarem em alguma parte do Brasil no combate ao coronavírus .
Desde 20 de maio, Manoela atua na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) da ala indígena do Hospital de Campanha Nilton Linz, prédio de um antigo hospital privado que estava fechado e foi recuperado para atender os pacientes vindos do interior do Estado.
Antes de cruzar o país para ajudar outros brasileiros durante a pandemia, Manoela precisou convencer a família que estava pronta para o trabalho. Graduada desde 2017 pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) e recém-formada como especialista em infectologia e neurologia pela Universidade Franciscana, a fisioterapeuta tomou a decisão ao receber a mensagem de que o ministério estava cadastrando profissionais.
Em 3 de maio, ela embarcou para Manaus e iniciou o treinamento de duas semanas. Ela viajou sabendo que receberia transporte, alojamento e alimentação. Apenas na chegada ao Amazonas, descobriu que teria direito a um salário mensal.
Nas primeiras duas semanas, ela participou de um treinamento e ficou confinada no hotel, distante cerca de 10 quilômetros do centro de Manaus, à espera do chamado para o trabalho. Manoela tem contrato renovado por mês. Até o final de julho, é certa a estadia no Amazonas. Mas ela está preparada para ficar seis meses no outro extremo do país.
Confira, abaixo, o relato da fisioterapeuta:
Cidade sem máscara
"Fui ao centro de Manaus uma única vez. Com colegas, comprei roupas específicas que uso no trajeto entre o hotel e o hospital. São uniformes de bloco cirúrgico, feitos de um tecido mais fácil para lavar e secar. No caminho, ficamos bem assustados com o que vimos. Mesmo com toda a situação, a população ainda segue nas ruas e muita gente não usa máscara."
Ala indígena
"No primeiro dia de trabalho, criamos a ala indígena na UTI. São 10 leitos para pacientes em estado gravíssimo. Até então, não havia nenhuma específica para os indígenas em Manaus. E como o contágio estava aumentando nas aldeias, decidimos criá-la. Nos leitos clínicos, instalamos até redes para o maior conforto deles. Também montamos uma sala especial para conversas com o pajé, já que eles são os chefes e, muitas vezes, precisam dar o consentimento para alguns procedimentos."
Pacientes graves
"Até o dia 4 de de junho, tínhamos cinco leitos ocupados na UTI indígena porque a outra UTI, com 16 leitos, estava lotada. Todos os dias chegam novos pacientes do interior porque o vírus está se espalhando rapidamente pelos lugares mais distantes do Amazonas, atingindo aldeias onde se pode chegar só de barco. Até agora, só atendi um único paciente que chegou falando e tentamos evitar a ventilação, mas foi impossível. E, logo depois, ele também precisou ser entubado."
Mortes
"Morrem três, quatro pacientes a cada turno de 12 horas porque eles já chegam de outros locais ou da aldeia em estado gravíssimo. Eu vejo pessoas morrerem o tempo todo. Sou a única fisioterapeuta da ala das 7h até as 19h, passo até três vezes por paciente a cada plantão. Como estão com ventilação mecânica, minha principal ação é tentar ajustar os parâmetros para os pulmões conseguirem ficar o menos dependente possível. Não posso me ausentar. Só saio para almoçar porque é muito trabalho para tirar todos os EPIs."
Estratégias
"Há uma peculiaridade na ala indígena. Geralmente, são pacientes grandes, com mais de cem quilos e as camas são pequenas. Por isso, não conseguimos fazer a manobra de pronar (deixar o paciente de bruços para ajudar na oxigenação). Criamos outras formas para reverter os quadros, tentamos não gastar a energia do paciente. Estamos com a ala bem dividida entre homens e mulheres, quase 50% para cada, e com idades entre 30 e quase cem anos. Peguei um paciente de 91 anos. Me deu dó."
Sobrevivente
"Até hoje, vi um paciente tirar o tubo e sair vivo da minha ala. Ele tinha 32 anos, sem comorbidades e foi o mais novo a ficar internado. Só no nosso hospital, foram mais de duas semanas. Quando o desentubamos, ele levou algumas horas para retomar a consciência total. Olhava para todos, tentando entender o que ocorria. O momento mais emocionante foi quando consegui colocá-lo sentado na cama, com apoio, e ele se manteve. Pedi para ele forçar o corpo para frente e voltar e ele conseguiu. Deu um sorriso meio tímido, como se dissesse "estou conseguindo, estou melhorando!". No dia da saída dele, no início desta semana, fizemos um corredor para ele passar e cantamos É preciso saber viver. Ele ficou com déficit motor e precisará fazer diálise por conta da covid-19."
Luta
"Durante a minha residência, vi muitos pacientes morrerem. Mas foi diferente. Aqui (em Manaus), eles apresentam melhoras e nos enchem de esperança. No último segundo, porém, acabam não aguentando. É muito difícil ficar até 21 dias acompanhando a melhora de um paciente a cada dia mas, quando vamos desentubá-lo, ele não volta. Uma senhora, por exemplo, conseguimos ir tirando a sedação e ela dando ótimas respostas. Ao tirarmos o tubo, ela não conseguiu voltar do coma. Parecem não ter força na musculatura respiratória. Bato no peito e tento seguir da melhor forma possível. Quando saio do hospital, deixo toda a experiência daquele dia lá para não enlouquecer aqui fora."
Responsabilidade
"Se não estou no hospital, estou no hotel estudando, buscando novas informações sobre a covid-19 para sempre ter algo a acrescentar nos tratamentos. A resolução do nosso conselho (de Fisioterapia) fala que a gente precisa estar à disposição da população em caso de pandemias, guerras e catástrofes. Muitos profissionais, mesmo assim, ainda ficam com receio. Recomendo para todos que devem aceitar o convite para atuarem no combate à covid-19. O profissional deve ir de peito aberto, com humildade para atender as pessoas e aprender a cada dia."
Lição
"Nunca pensei em sair sozinha do interior do Rio Grande do Sul e atravessar o Brasil. Essa experiência me mostrou que posso lidar com tudo o que aparecer pela frente. Aqui, confirmei que a gente tem que cuidar do outro, em qualquer momento da vida, ajudar quem precisa de ajuda, não fechar os olhos para os problemas e fazer o máximo que puder pelo próximo. Um dia de cada vez."