Ao ver no noticiário a situação enfrentada pelos profissionais de saúde em Manaus, capital do Amazonas, o médico especializado em medicina de emergência Ian Ward Abdalla Maia, 27 anos, não teve dúvidas: fez a inscrição na força-tarefa do Ministério da Saúde, pegou um voo em Porto Alegre, onde mora e trabalha, e juntou-se aos colegas do outro lado do País para atuar no combate à pandemia de covid-19. Entre 1º e 18 de maio, atuou em plantões diários de 12 horas no maior hospital da capital amazonense.
Carioca, Maia vive em Porto Alegre há três anos, onde fez a especialização no Hospital de Clínicas e foi contratado pelo Hospital Mãe de Deus. Nesta semana, ele retornou ao Rio Grande do Sul. Ele cumprirá uma quarentena obrigatória de sete dias antes de retornar ao trabalho.
Por videochamada, Maia contou à reportagem de GaúchaZH como foi a experiência com pacientes graves acometidos pela covid-19, em Manaus.
A ida
— Eu sou um profissional em início de carreira, querendo trabalhar, ajudar. E estava vendo a situação de outras capitais, onde o sistema já era precário antes do coronavírus. Recebi a informação num grupo de emergencistas de todo o Brasil. Receberia a comida, a passagem e o hotel. Na hora, pensei "se eu puder ajudar, vou viver esta experiência!" Peguei um voo em Porto Alegre e fui até Brasília, onde encontrei outros profissionais voluntários. Só fui eu de Porto Alegre. Fizemos uma pequena capacitação de dois dias. O Ministério fretou um jato para cerca de 15 pessoas, entre eles, quatro médicos.
O começo
— Chegamos na noite de 1º de maio em Manaus. Na manhã seguinte, nos dividimos em times. É uma experiência única. Imagine um cenário de guerra e você indo para a trincheira. Me equipei todo, só ficando os olhos de fora e com óculos. Passei por uma porta de metal e me colocaram na sala vermelha. Tinha gritaria e desespero dos profissionais que estavam lá numa exaustão muito grande, cansados e tentando controlar a situação. Me apresentei ao médico que já estava na escala e eu senti que ele estava tão atordoado que não conseguiu me dar uma função. Fui a um enfermeiro e ele me orientou sobre os primeiros pacientes. Fui tentando apagar os incêndios ao longo do plantão, tentando dar um tratamento aos pacientes.
A rotina
— O equipamento de proteção era um macacão cobrindo até a cabeça, com a máscara N-95, uma viseira e o óculos. É extremamente desconfortável. Passávamos, pelo menos, seis horas direto no "covidário" (área de tratamento dos pacientes com covid-19) porque para ir ao banheiro ou beber água era preciso descartar todo este equipamento. Ficamos preocupados apenas em não nos contaminarmos e não contaminarmos outras pessoas. É um ambiente muito estressante.
Honestidade com o paciente
— Tem uma coisa muito chocante, e me emociono quando falo. O covid é uma doença peculiar. Os pacientes chegam muito graves, com uma patologia pulmonar, mas eles estão muito conscientes e entendendo tudo o que está ocorrendo. Nunca esquecerei de um dos primeiros pacientes que atendi. Ele tinha 64 anos, obeso e hipertenso, e estava com oxigênio, consciente e vendo as pessoas sendo intubadas, morrendo, sendo ensacadas e carregadas na maca para onde ficavam os corpos. A gente tentando evitar que ele visse, mas era uma correria tão grande. Via a angústia no olhar dele. Tive que ir até ele e dizer 'acho que se o senhor não melhorar, talvez tenhamos que lhe intubar'. Ele falou 'doutor, eu sei que o tenho é muito grave, mas quero estar acordado quando a morte vier'. Eu não soube o que falar. Eu era o médico dele nas próximas quatro horas e não sabia se o veria novamente.
Sobre a morte
— A falta da família é algo que torna esse momento ainda mais difícil. O risco de contaminação é grande. Por isso, os pacientes ficam sem acompanhantes. Dar a notícia à família é algo muito difícil e marcante. Em média, morriam quatro ou cinco pacientes por plantão de 12 horas. Imagina eu, numa sala com os familiares, tentando afastá-los e ainda ter que dar a notícia do óbito. Ouvi muito "doutor, mas há três dias ele estava bem", "mas os testes estavam bons". É um momento breve de dor, que você tenta ter empatia e prestar solidariedade. Porém, tem o próximo. Saem chorando os familiares de um paciente e chegam os de outro, ainda com esperança, e você precisa começar tudo de novo. E a sequência de dar este tipo de notícia é devastadora."
Automático
— Sempre fui um médico que nunca tive vergonha de chorar. Sempre preservei os meus medos e minhas angústias, porque isso me torna um ser humano. Mas numa guerra como esta é difícil continuar sendo humano. É preciso tentar tocar o barco. Tem que ser automático porque outras pessoas dependem de você.
Exaustão
— No final de cada plantão, passava pela sala de descontaminação e sentava no meio-fio da calçada para esperar o ônibus que nos levava para o hotel. Era menos um dia. Um plantão destes deixa a gente fisicamente exausto. Voltava para o hotel e ficava em silêncio, pensando o que eu precisava melhorar no dia seguinte e o que levaria para a minha vida desta experiência.
Lição
— Tentei dar o meu melhor para aquelas pessoas que eu conhecia num breve momento, o pior momento da vida delas. Usei tudo o que aprendi na especialização de três anos no Hospital de Clínicas em Porto Alegre. As pessoas precisam saber que a assistência pública de saúde de Porto Alegre tem excelentes profissionais. Sinto orgulho de ter feito minha formação no HPS e no Hospital de Clínicas. Todos os profissionais que me ensinaram estavam comigo em Manaus. É um aprendizado que vou levar para a minha vida inteira.