Foi dada a largada em uma das mais importantes corridas dos últimos tempos: aquela atrás de uma vacina que proteja a população contra o coronavírus. Nações como Alemanha e Reino Unido anunciaram, recentemente, testes com os imunizantes em humanos, chamados de ensaios clínicos. Estados Unidos, China e Rússia também já mencionaram a testagem.
Um dos anúncios mais contundentes foi o do Reino Unido, feito na última terça-feira (21), pelo secretário de Saúde, Matt Hancock. Ele afirmou que os testes em humanos de uma vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford começariam nesta quinta.
— Eu posso anunciar que a vacina do projeto de Oxford começará a ser testada em pessoas a partir desta quinta. Em condições normais, alcançar este estágio levaria anos. Estou muito orgulhoso do trabalho feito até agora. Se a segurança da vacina for comprovada, nós poderemos torná-la disponível tão logo seja possível — disse.
Conforme ventilado pela imprensa local, o governo estima que o imunizante esteja disponível em ainda em setembro. Batizada de ChAdOx1 nCoV-19, a vacina foi criada por uma equipe que já havia desenvolvido uma proteção promissora para outra doença do coronavírus, a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers). Quando anunciou o ensaio, no final de março, a Universidade mencionou que seriam recrutados até 510 voluntários entre 18 e 55 anos.
Em paralelo, o Paul-Ehrlich-Institut, Instituto Federal de Vacinas e Biomedicina da Alemanha, também divulgou que iniciará, nos próximos meses, os testes em humanos de uma vacina desenvolvida pela empresa alemã Biontech e pelo grupo americano Pfizer. A chamada vacina RNA deve ser testada em 200 voluntários, entre 18 e 55 anos.
No dia 16 de março, o Kaiser Permanente Washington Health Research Institute (KPWHRI), dos Estados Unidos, aplicou a primeira vacina experimental contra o coronavírus. Na fase 1, foram 45 participantes, na mesma faixa etária das outras pesquisas.
Para Mayra Moura, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), o caminho trilhado até agora representa um grande progresso, especialmente porque, em condições normais, uma vacina ou medicamento levaria entre cinco a 10 anos para ser desenvolvido.
— Já é um grande avanço ter, em quatro meses, várias candidatas em fase de estudos clínicos — avalia.
Esse longo período se justifica pelos rigorosos processos pelos quais é preciso passar (leia abaixo) para se obter uma aprovação das agências reguladoras (no Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Anvisa). Sem burlar nenhuma dessas etapas, o que se vê até o momento é uma grande aceleração em fases laboratoriais e realização de fases em paralelo.
— Quando se fala em ter uma vacina completamente nova em setembro, é algo muito acelerado. Muito, muito, muito fora da curva do que costumamos ter — enfatiza a especialista.
— Isso significa que a parte laboratorial e animal foi muito rápida. Muito porque temos disponibilidade tecnológica avançada e, também, por já terem alguma experiência com o coronavírus (no caso da equipe de Oxford, que já havia trabalhado com uma vacina para Me) — explica Mayra.
Além disso, a agilidade também é resultado de uma enxurrada de investimentos para financiar as pesquisas. Só no Reino Unido, o governo falou em 20 milhões de libras (mais de R$ 134, 6 milhões) para as instituições envolvidas no projeto.
— Eles não estão pulando etapas, mas as acelerando. Para isso, fazem algumas em paralelo. O impacto disso é custo: estão apostando que vão para outra fase, mas pode ser que não vão — comenta Mayra.
Em um cenário em que tudo dê certo, seria possível contar com a vacina até o fim do ano, acredita a especialista. Mesmo assim, esbarraríamos em outra questão: a capacidade fabril de produção em escala mundial.
— É difícil apostar. Eu acho que até o fim do ano conseguimos, setembro é muito otimismo. De qualquer forma, precisamos pensar na capacidade da indústria. Quem for produzir tem que ter escala de bilhões de doses — observa.
Jorge Kalil, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e diretor do laboratório de imunologia do Instituto do Coração (Incor), destaca que todos os esforços são válidos. No entanto, encontrar um resultado preciso é o grande desafio.
— A resposta imune contra o vírus é complexa e não depende só de anticorpos. Se, de cem candidatas, tivermos duas ou três boas, é um ótimo aproveitamento — fala o pesquisador, que está à frente de uma pesquisa que busca desenvolver uma vacina contra o coronavírus.
— Esperamos que, desses projetos, tenham vários bons e que ofereçam as melhores condições, preço bom, cobertura boa e que dure por muito tempo — completa.
Kalil acredita que ter algum conhecimento prévio sobre a Mers, espécie de "parente" do coronavírus da pandemia atual (Sars-CoV-2), pode ter acelerado o processo de desenvolvimento no Reino Unido, porém, pondera:
— Se eles já tinham experimentos em animais que mostrassem a eficácia, sem dúvida eles estão avançados. Mas o fato de uma pessoa ter testes mais à frente não significa que esteja realmente na frente, pois ela pode estar na direção errada.
Até o momento, já são mais de 2,6 milhões de casos confirmados no mundo e mais de 184 mil mortes registradas em decorrência da covid-19, conforme o levantamento global feito pela universidade americana Johns Hopkins.
As fases de uma vacina ou medicamento
Para serem aprovados para uso, tanto vacinas quanto medicamentos passam por três grandes fases, veja:
1) Laboratorial
É uma das fases mais demoradas, na qual os pesquisadores precisam definir qual parte daquele micro-organismo, vírus ou bactéria será usado no imunizante. Neste momento, os cientistas precisam encontrar a parte do vírus que vai provocar a melhor resposta quando em contato com nossas células de defesa.
2) Pré-clínica
Nesta etapa, são feitos testes em animais como camundongos, coelhos ou macacos.
3) Ensaios clínicos
Quando todos os passos anteriores são bem-sucedidos, começam os testes em humanos. A fase é dividida em três etapas. Na primeira, feita com poucas pessoas (de 50 a cem), é testada a segurança da substância. Em paralelo, também se avalia a eficácia da vacina. Aqui, já se pode começar a definir dosagens ou esquemas de imunização (uma ou mais doses, por exemplo).
Quando essa primeira fase do ensaio clínico é aprovada, passa-se para a fase 2, na qual a testagem de segurança e eficácia é ampliada para um número maior de pessoas, com um esquema de dosagem já definido.
Por fim, ao alcançar a fase 3, o ensaio testa mais de mil pessoas (os cálculos de número de pessoas testadas são estatísticos para ter representatividade na população). Se houver bons resultados em todas as fases, o dossiê completo com os dados é submetido às agências regulatórias, que aprovam os registros. Só a partir desse momento, em posse do registro, é que vacinas ou medicamentos podem ser comercializados ou fornecidos à população.