A pandemia de coronavírus tem reduzido atendimentos cardiológicos de emergência em todo o país, especialmente os infartos e anginas instáveis, fenômeno também observado em países da Europa e nos Estados Unidos.
No caso das angioplastias primárias (desobstrução da artéria por meio de um balão e, depois, colocação de stent), a redução chega a 70%, segundo as sociedades brasileira e paulista de cardiologia.
No Instituto do Coração (InCor), a redução estimada das angioplastias primárias está em torno de 50%. A média mensal é de 40 casos; nesses primeiros 13 dias de abril, apenas nove foram realizadas. Dados da Sociedade Brasileira de Cardiologia Intervencionista também apontam diminuição de até 70% desses procedimentos em todo o país na primeira semana de abril.
A mortalidade por infarto chega a 50% — com a angioplastia, cai para 5%. A outra metade sobrevive, mas pode ficar com sequelas no coração, como a insuficiência cardíaca.
Ainda não dá dados consolidados e nem uma explicação única sobre a diminuição dos atendimentos de infarto. Entre as hipóteses estão a possibilidade de haver de fato uma diminuição das ocorrências e, a mais plausível, de que as pessoas estejam retardando a busca por socorro, o que pode agravar o quadro cardíaco ou causar morte repentina em casa.
— As pessoas não estão chegando às emergências, mas vão continuar morrendo de causas cardíacas. A covid-19 é um fator complicador. O medo pode atrasar a busca por socorro ao mesmo tempo em que essas 14 milhões de pessoas com doenças cardiovasculares têm risco maior de complicações por conta da infecção — explica o cardiologista Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC).
A SBC acaba de lançar um serviço de telecardiologia, em que médicos voluntários vão orientar pacientes virtualmente sobre as doenças cardiovasculares; por exemplo, se suspendem ou não certos medicamentos ou quando devem procurar o hospital.
Segundo Alvaro Avezum, diretor da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp), os relatos mostram que na Itália, Espanha, EUA e Reino Unido as unidades de emergências têm percebido redução de 20% a 70% no número de atendimentos de casos cardiovasculares.
Hipóteses
A diminuição nos casos é mais intrigante ainda considerando que é comum que nas temporadas gripais e de frio aumentem os casos de infarto. Uma das possibilidades, segundo o especialista, seria estar ocorrendo uma diminuição real dos casos. Home office, menos estresse associado ao trabalho (consequentemente, menos uso de cigarro), alimentação mais controlada e menos poluição poderiam ser fatores que diminuiriam os infartos, por exemplo.
Outra explicação possível, e talvez mais próxima do real motivo, é o medo. As pessoas, por um possível risco de infecção pelo novo coronavírus, estariam receosas de ir a serviços de pronto-atendimento.
— Neste momento, estamos especulando. É um achado que as pessoas estão observando. Agora, precisamos traduzir o que foi observado para algo constatado e, para isso, é preciso um estudo — pondera Avezum.
A cardiologista Gláucia Moraes de Oliveira, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), aposta na hipótese do medo:
— Mesmos os nossos doentes descompensados tentam postergar. A gente liga, e eles dizem que estão pouco melhor. Ninguém está querendo ir para o hospital, só procuram quando estão muito mal.
Alexandre Abizaid, chefe do setor de cardiologia intervencionista do InCor, também tem a mesma percepção. Afirma que as pessoas, especialmente as mais velhas, estão resistindo a procurar as emergências, temendo o contágio pelo coronavírus.
— Tivemos o caso de uma senhora que infartou em casa, esperou três dias, chegou ao hospital em situação terrível, com choque cardiogênico, e morreu — conta o médico.
Ele explica que, mesmo que não morram na hora em razão do infarto, essas pessoas ficarão com sequelas, como falta de ar e inchaço nas pernas, sinais da insuficiência cardíaca.
— O risco de mortalidade por infarto é muito maior do que ir para o hospital e pegar coronavírus. No hospital, o paciente com suspeita de infarto tem um caminho totalmente distinto daquele com suspeita de síndrome gripal.
Para Avezum, é importantíssima a procura rápida por socorro, considerando que existe um período crítico de 12 horas para desbloquear os vasos problemáticos.
— Nunca devemos, nunca mesmo, negligenciar um sintoma cardiológico. Pode ser dor no peito, ou perto do estômago, nas costas, no braço esquerdo, na mandíbula e pescoço. Essas dores associadas com náuseas, vômito, sudorese são igual a pronto-socorro. Mesmo com cenário de covid-19, a pessoa deve ir ao pronto-socorro — acrescentou.
Segundo Leopoldo Piegas, cardiologista do Hospital do Coração (HCor), há de fato uma mudança comportamental:
— No passado, um portador de doença coronariana, ao ter uma dor precordial, viria rapidamente para o hospital. Agora, só vem se tiver uma dor muito forte.
Um outro indicador que demonstra esse atraso é o chamado tempo porta-balão, ou seja, o tempo que se leva para abrir o vaso obstruído. Quanto menor, mais chances de salvar o músculo cardíaco e a vida da pessoa.
— Nossa meta é na primeira hora, no máximo uma hora e meia. Isso, com a pandemia, já está mudando, as pessoas estão chegando mais tarde. Só vão quando a dor está muito forte. Também pode haver atraso nos trâmites dos hospitais e das UPAs, já que estão com foco no coronavírus ou dificuldade de transporte até o hospital — observa Piegas.
Os exames de eletrocardiograma também tiveram queda. O serviço de telecardiologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que atende mil municípios brasileiros, realizou no mês de março apenas 400 eletrocardiogramas, contra uma média mensal de 65 mil.
— São exames feitos nas UBSs, mas também nas emergências dos hospitais. As pessoas estão deixando de ir para as consultas, mas também para as emergências — afirma o cardiologista Tom Ribeiro, professor da UFMG.
Marcelo Queiroga, que atua no único hospital público de cardiologia da Paraíba, em João Pessoa, fazia dez cateterismos por dia. Agora, passou a fazer apenas um exame:
— Essa questão nos preocupa muito, porque estamos vendo isso acontecer no país todo.
Para Ribeiro, são necessários tempo e dados para se entender melhor o fenômeno. As informações sobre internação hospitalar e causas de mortalidade demoram, no mínimo, três meses a partir da ocorrência para chegar até um banco de dados nacional. Ele levanta outras hipóteses que poderiam contribuir para a queda das emergências cardíacas:
— Será que a redução da poluição tem algum efeito? Será que há risco competitivo? A pessoa cardíaca se infecta e está morrendo pela covid-19? Precisamos de tempo para esclarecer.