Nos últimos tempos, ocorreram movimentos que podem limitar a judicialização dos casos isolados ou tornar mais difícil para os pacientes a obtenção de decisões favoráveis quando estes movem processos judiciais em busca de autorização para compra de medicamentos caros para tratamentos de problemas raros de saúde. Entre esses movimentos estão decisões tomadas neste ano pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Os ministros foram colocados diante de três temas. Já se pronunciaram sobre dois.
Um deles diz respeito à solidariedade entre municípios, Estados e União em relação ao Sistema Único de Saúde (SUS). Como os três entes são responsáveis pelo sistema, surgiu um entendimento de que era possível apresentar demandas judiciais perante qualquer um ou mesmo a todos em conjunto, simultaneamente. Sócio de Elisandra Vestena, o advogado Renato Correa Curcio afirma que tem preferido ingressar na Justiça Federal, em geral contra União, Estado e município ao mesmo tempo:
– A Justiça Federal tem mais recursos, mais estrutura, não está tão cheia de processos. Isso dá agilidade. Se ingressamos na Justiça Estadual, só contra o Estado e o município, pode ser mais demorado, porque eles podem argumentar que aquele medicamente não é com eles, que é com a União. Então preferimos entrar contra os três, já que eles têm uma responsabilidade solidária.
Acontece, no entanto, que para a generalidade das pessoas é muito mais fácil ter acesso à Justiça Estadual do que à Federal, presente em uma quantidade menor de municípios. Por isso, uma proporção enorme de pacientes processa apenas Estados e municípios (a União só pode ser demandada na Justiça Federal), mesmo quando a medicação que buscam, conforme a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), deveria ser bancada por Brasília. Na prática, isso tem feito governos estaduais serem sentenciados a pagar por esses remédios que, a princípio, não seriam sua responsabilidade.
Ao deliberar sobre o assunto, o STF estabeleceu que, embora solidariamente responsáveis pela saúde, municípios, Estados e União têm competências distintas, e cabe à autoridade judicial direcionar o cumprimento das sentenças conforme as regras de repartição dessas competências. Ou seja, se a Secretaria Estadual da Saúde for condenada a comprar uma medicação que é da alçada da União, poderá ser ressarcida por isso. Em alguns Estados, a partir dessa decisão, juízes estaduais passaram a não aceitar ações que envolvam medicamentos de alto custo, que são de competência federal.
– O juiz vê que é um medicamento de alto custo, que é da União, e manda para a Justiça Federal – diz Bruno Naundorf, diretor da auditoria do SUS da secretaria.
O segundo tema analisado pelo STF foi dos medicamentos que não têm registro na Anvisa, ou seja, não estão autorizados a ser comercializados no Brasil. O entendimento dos magistrados, nesse caso, foi de que o Estado não pode ser obrigado a fornecer essas drogas – exceto em situações excepcionais. Em seu voto-vista, o ministro Alexandre de Moraes afirmou: "Não se trata de negar direito fundamental à saúde. Trata-se de analisar que a arrecadação estatal, o orçamento e a destinação à saúde pública são finitos. Para cada liminar concedida, os valores são retirados do planejamento das políticas públicas destinadas a toda coletividade". Se isso não for levado em conta, acrescentou, "não teremos universalidade, mas seletividade, onde aqueles que obtêm uma decisão judicial acabam tendo preferência em relação a toda uma política pública planejada".
A tendência, portanto, seria de o Judiciário, a partir de agora, indeferir esse tipo de ação.
O terceiro tema a ser apreciado, que ainda está pendente, é potencialmente o de maior repercussão em termos de judicialização da saúde. Os ministros vão se pronunciar sobre o universo que responde pelo grosso das ações judiciais: os remédios que estão registrados na Anvisa, mas que não entraram na lista do SUS – os chamados medicamentos de alto custo.
Embora o julgamento não tenha ocorrido, voto anterior dado pelo ministro Edson Facchin foi entendido como uma antecipação do que está por vir. "Se a pretensão veicular pedido de tratamento, procedimento, material ou medicamento não incluído nas políticas públicas em todas as suas hipóteses, a União necessariamente comporá o polo passivo, considerado que o Ministério da Saúde detém competência para incorporação, exclusão ou alteração de novos medicamentos, produtos, procedimentos, bem como constituição ou alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, de modo que recai sobre ela o dever de indicar o motivo ou as razões da não padronização e eventualmente iniciar o procedimento de análise de inclusão nos termos da respectiva fundamentação", afirmou o magistrado.
Em linguagem simplificada, isso quer dizer que cabe ao governo federal a incorporação de remédios na lista do SUS e, portanto, quando um remédio que não estiver incluído for requerido na Justiça, o governo federal obrigatoriamente deverá figurar entre os processados. Para que isso aconteça, a ação tem de correr na Justiça Federal. É uma perspectiva de desafogo para os governos estaduais, por um lado, e uma limitação para os pacientes, por outro.
Em tese, as mudanças (orientadas pelas decisões do STF) vão no sentido de deixar mais difícil o acesso do paciente.
ENIR MADRUGA DE ÁVILA
Diretor do núcleo de defesa da saúde da Defensoria Pública do RS
– Já há um desenho do posicionamento do STF, porque dificilmente a questão do medicamento de alto custo será contraditória com os dois julgamentos anteriores. Então se prevê, e essa é uma previsão otimista pró-sistema, que a decisão venha na mesma lógica – afirma Naundorf.
Enir Madruga de Ávila, que dirige o núcleo de defesa da saúde da Defensoria Pública do Estado, está preocupado com as decisões da Suprema Corte. Ele acredita que o acesso dos pacientes pode ficar mais complicado, e teme uma limitação do raio de ação da defensoria estadual, que hoje é o principal canal para a judicialização, com 80% dos casos dizendo respeito a medicamentos.
Por razões processuais, a defensoria só pode acionar a Justiça Estadual. À medida que o governo federal foi colocado obrigatoriamente no polo passivo em caso de remédios não registrados na Anvisa, o que leva essas situações para a Justiça Federal, haveria um impedimento para a ação dos defensores estaduais. Se essa mesma linha for adotada no que diz respeito aos remédios de alto custo – principal área de atuação da Defensoria –, a situação ficaria ainda mais complicada.
– Sempre demandamos contra o Estado e, vez por outra, contra o município. Vai sem dúvida haver um embaraço, uma dificuldade para as pessoas terem acesso a essas medicações. Já está acontecendo, porque muitos juízes passaram a entender que não são mais competentes para julgar esses casos. Às vezes remetem para a Justiça Federal, se tem Justiça Federal na comarca, ou, se não tem, simplesmente extinguem o processo. Estamos caminhando em ovos – diz Ávila.
A escassez de tribunais federais, na sua avaliação, traz maior dificuldade para os pacientes buscarem justiça.
– É um problema sério na visão do assistido. Na prática, fica complicado para o morador do Interior se deslocar até uma cidade que seja sede da Justiça Federal. Em tese, as mudanças vão no sentido de deixar mais difícil o acesso do paciente. Se não houver possibilidade de competência delegada, em que a Justiça Estadual possa julgar demandas contra a União naquelas comarcas onde não existe Justiça Federal instalada, vamos ter um problema bastante sério de afunilamento de chance de ingresso de demanda judicial.
Os medicamentos mais caros
Os 10 fármacos mais custosos adquiridos em 2018 pelo governo federal atendendo a ações judiciais representam sozinhos 87% da judicialização da saúde durante o ano. Somente com esses fármacos, foi gasto R$ 1,2 bilhão para atender a 1.596 pacientes em 2018. O valor médio por paciente foi de R$ 759 mil. O grande campeão foi o Soliris (eculizumabe), para o tratamento de uma doença do sangue chamada hemoglobinúria paroxística noturna, com gasto acumulado de R$ 368,5 milhões. Veja a lista dos 10 mais caros: