A saúde é direito de todos e dever do Estado. Esse preceito constitucional, expresso no artigo 196, está na base de um dilema complexo, que coloca de um lado pacientes que buscam no Judiciário o acesso a medicações que podem representar sua última esperança e, de outro, gestores públicos às voltas com o problema de atender à população com orçamentos limitados.
Nos últimos 10 anos, o Ministério da Saúde desembolsou mais de R$ 6 bilhões para fornecer remédios e tratamentos determinados pela Justiça. Trata-se de um gasto crescente. Em 2009, a prática que ganhou o nome de judicialização custou R$ 120 milhões. Em 2018, bateu o recorde de R$ 1,4 bilhão.
A maior parte desse valor beneficiou vítimas de doenças raras, que reivindicaram ao Judiciário o recebimento de drogas que não estão na relação daquelas fornecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). No ano passado, ações movidas por apenas 1.596 pessoas representaram um gasto para o governo federal de R$ 1,1 bilhão, destinado à compra de 10 diferentes remédios supercaros.
Mas a conta é muito maior, porque também envolve prefeituras e Estados. No Rio Grande do Sul, processos judiciais movidos por pacientes obrigaram a Secretaria Estadual da Saúde a gastar, só no último ano, R$ 435,8 milhões – o que representou 16% de todo o recurso orçamentário para o setor. Aplicar esses altos valores em casos isolados e não no sistema como um todo constitui um problema enfrentado por autoridades, que buscam reduzir os processos e estabelecer critérios mais rígidos para as decisões dos juízes. Na outra ponta do problema, o que se vê são indivíduos e famílias diante de situações desesperadoras. Além de estarem às voltas com enfermidades gravíssimas, ainda deparam com a frustração de não encontrar amparo no sistema público de saúde. Para essas pessoas, judicializar e onerar o governo é, muitas vezes, a única chance de sobrevivência.
Um caso exemplar é o da moradora de Porto Alegre Márcia Cristina Fernandes, 37 anos. Em 2008, aos 26 anos, ela teve um diagnóstico de câncer de mama. Fez o tratamento pelo plano de saúde oferecido na empresa em que trabalhava e foi dada como curada em 2013. No ano seguinte, teve uma filha, Lara, e deixou o emprego. Exames de rotina realizados em 2016 detectaram o retorno da doença, na pleura. Apanhada sem plano de saúde, Márcia recorreu ao SUS.
Segundo ela, o quimioterápico mais indicado, trastuzumabe, não era fornecido pelo sistema público, na época, em casos de câncer metastático. Só a mulheres que tinham o tumor pela primeira vez.
– Tu sabes que há tratamento, vês as outras pessoas fazendo ali do teu lado, mas tu não podes receber. É um sofrimento – diz Márcia.
Enquanto recebia outras quimioterapias fornecidas pelos SUS, ela procurou a Defensoria Pública e entrou com um processo na Justiça Federal. Passaram-se dois meses até que o juiz determinasse uma perícia médica. Márcia esperou mais um mês, mas o laudo não saía. Nesse meio tempo, o câncer avançou para os ossos. Apavorada, recorreu ao Instituto da Mama (Imama-RS), que a ajudou com uma ação na Justiça Estadual. Em 20 dias, veio uma decisão obrigando o governo gaúcho a fornecer o trastuzumabe.
Mas, quando foi à farmácia do Estado, Márcia descobriu que a droga estava em falta. Solicitou o repasse do dinheiro para a compra em uma farmácia comercial. Começou os trâmites burocráticos, que envolviam passos como obter orçamentos em três estabelecimentos diferentes. Nisso, mais um mês transcorreu. Quando estava para receber o valor, foi informada de que o suprimento do remédio pelo Estado havia sido regularizado. Márcia realizou a primeira aplicação do quimioterápico em janeiro de 2017, depois de cinco meses de espera.
– Essa espera foi terrível. Eu só pensava na minha filha. Todo mundo queria fazer vaquinha para me dar os R$ 12 mil do remédio. Só que não eram apenas R$ 12 mil. Seriam R$ 12 mil a cada aplicação, a cada 21 dias, pelo resto da vida.
Depois de Márcia finalmente começar a receber o trastuzumabe – que mais tarde foi incluído no rol de medicamentos fornecidos via SUS para todas as pacientes –, o câncer parou de avançar. Não retrocedeu, mas ficou estabilizado.
– Essa medicação foi o que salvou a minha vida. Ela controlou minhas metástases. Não estaria mais aqui se não tivesse conseguido na Justiça. Ela me deu qualidade de vida, posso fazer minhas atividades, posso ver minha filha crescer. Se eu tiver outra metástase ou a doença deixar de estar sob o controle, sei que há medicações, mas não estão no SUS. Então vou ter de entrar na Justiça de novo – afirma.
A advogada Cíntia Seben, vice-presidente do Imama-RS e responsável pelo setor jurídico do instituto, diz que o trastuzumabe e outras drogas incluídas no rol do SUS continuaram a motivar ações judiciais em razão de faltas na farmácia do Estado, o que teria sido causado, pelo menos em parte, por compras em quantidade insuficiente pela União.
O Imama também auxilia pacientes a conseguirem na Justiça remédios que não constam na relação do sistema público, quando essa é a única chance de recuperação. As sentenças costumam ser ágeis e favoráveis às doentes, mas Cíntia reforça que a posição da ONG é pela não judicialização:
– É uma situação que a gente precisa evitar, porque sabemos que, ao judicializar, promovemos um rombo. Na judicialização, apresentamos três orçamentos e compramos na farmácia, onde o custo é muito maior. Se a aquisição é pelo Ministério da Saúde, ocorre em grande quantidade, por um valor bem mais baixo. O trastuzumabe, por exemplo, fica 10 vezes mais caro pela judicialização. Por isso, tentamos a via administrativa. O problema é que a paciente não pode esperar.
De onde pode vir a ajuda?
Saiba ao que você pode recorrer
- Defensoria Pública do Estado: a Defensoria tem postos de atendimento em 156 municípios gaúchos (os endereços estão em defensoria.rs.def.br). Os interessados devem comparecer nesse locais munidos de documentos pessoais e referentes ao seu problema. A Defensoria orienta, tentando uma solução administrativa ou, se for o caso, ajuizando uma ação. O serviço está voltado a famílias com renda mensal bruta de até três salários mínimos (deduzidos o valor equivalente a 25% do salário mínimo por dependente e o valor equivalente a 50% do salário mínimo por dependente incapacitado para o trabalho que demande gastos extraordinários). Os bens não devem ultrapassar 300 salários mínimos. Outras informações no Alô Defensoria: (51) 3225-0777.
- Defensoria Pública da União: o atendimento ocorre em sete municípios gaúchos: Porto Alegre, Bagé, Canoas, Pelotas, Rio Grande, Santa Maria e Uruguaiana (endereços em dpu.def.br/contatos-dpu). Para receber a assistência jurídica integral e gratuita, a renda familiar bruta não pode ultrapassar R$ 2 mil. As exceções acima desse valor de referência, como o comprometimento de parte significativa da renda com medicamentos de alto custo, são avaliadas caso a caso.
- Outras alternativas: para quem tem condições de arcar com os custos, é possível contratar um advogado. Algumas entidades e associações de pacientes contam com advogados que oferecem orientação jurídica.