Até a década de 1980, os brasileiros estavam divididos em três grandes grupos, no que diz respeito ao acesso à saúde. Havia aqueles com um plano privado, havia os trabalhadores com carteira assinada, que podiam receber atendimento via Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) – e havia o resto, um grande resto, que dependia de hospitais filantrópicos e Santas Casas. Com a promulgação da Constituição de 1988, nasceu o Sistema Único de Saúde (SUS), para cumprir o desígnio da saúde como um direito de todos e um dever do Estado. No novo sistema, a totalidade dos brasileiros passava a ter acesso a um sistema gratuito, com responsabilidades compartilhadas por municípios, Estados e União.
Foi um grande avanço, mas não demorou para aparecer um conflito entre a ideia de atendimento universal e o financiamento insuficiente. Sempre com base no artigo 196, veio a judicialização, na qual o Rio Grande do Sul foi pioneiro, no início para medicamentos que tratavam a aids. Só de 2005 para cá, mais de 180 mil pacientes gaúchos tiveram deferidas ações judiciais para obter medicamentos, o equivalente a 1,6% da população.
Bruno Naundorf, diretor da auditoria do SUS da Secretaria Estadual da Saúde, chama a atenção para o fato de que a Constituição estabelece que o direito do cidadão e o dever do Estado, no que diz respeito à saúde, devem ser garantidos “mediante políticas sociais e econômicas”:
– O legislador constituinte se inspirou no melhor sistema do mundo, que é o inglês, mas sem os recursos para isso. Passamos a ter um sistema universal. Só que universalidade não é dar tudo para todos. Universalidade é todos terem acesso. Mas é terem acesso na forma como querem ou na forma das políticas estabelecidas? A Constituição fala que é mediante políticas públicas instituídas. Não é dar tudo, que seria o princípio da integralidade. É dar o que foi instituído. Quando uma pessoa judicializa, ela quebra a universalidade e a equidade, que são pilares do SUS. Se há duas pessoas na mesma situação e uma obtém na Justiça o direito de ter um medicamento, não dá mais para dizer que todos terão o mesmo tratamento.
A política pública prevê que o SUS deve fornecer os remédios que constam da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename). Essa lista contém drogas do chamado componente básico (de responsabilidade municipal), do componente especial (da alçada dos governos estaduais) e do componente especializado (que podem ser adquiridos pelos Estados, mas principalmente pela União, em particular no que diz respeito a remédios de alto custo).
sabemos que, ao judicializar, promovemos um rombo. Se a aquisição é pelo Ministério da Saúde, ocorre em grande quantidade, por um valor bem mais baixo. Por isso, tentamos a via administrativa. O problema é que o paciente não pode esperar.
CÍNTIA SEBEN
Advogada Imama-RS
Para que um medicamento ingresse no Rename, ele precisa, em primeiro lugar, estar registrado e aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Mas isso não é suficiente para entrar na lista do SUS. Para isso, uma vez que o remédio esteja registrado, é preciso que algum agente solicite a avaliação dele pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), que analisará se o produto representa vantagem em relação aos já oferecidos e verificará seu impacto econômico. Se a Conitec der um parecer favorável, o caso segue para a Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e para o Ministério da Saúde. Só depois de todas essas etapas ocorre a inclusão na Rename, mediante uma portaria.
A judicialização dribla esse sistema. Neste ano, segundo a Secretaria da Saúde, dois terços dos medicamentos que foram judicializados no Estado não integravam a lista do SUS. Em alguns casos, eles nem sequer estão registrados na Anvisa. São drogas experimentais, que ainda não chegaram ao país.
– Passamos de uma judicialização que tinha a ver com a não execução das políticas públicas, no passado, para um número elevado, hoje, de pacientes buscando medicações não incluídas nas listagens – diz Naundorf.
Se o grosso da judicialização envolve medicações que não constam da Rename, também é verdade que em muitos casos os pacientes acionam os órgãos públicos porque os medicamentes que compõem a lista estão em falta. Nesses casos, há uma falha do sistema de saúde em cumprir sua parte – às vezes, motivada por problemas orçamentários. Agentes públicos entendem que a judicialização colabora para que essas falhas de fornecimento ocorram, à medida que limita os recursos disponível para a aquisição das drogas que estão na Rename.
– Quando um juiz determina uma droga que não está na política pública, esse dinheiro vai sair do caixa único do Estado e vai ser regularizado dentro do orçamento da Secretaria da Saúde. É um quantitativo elevado que deixa de ser aplicado em outras políticas e que desorganiza as finanças estatais – diz Naunforf.
O peso financeiro da judicialização
Quando um medicamento precisa ser adquirido na farmácia ou direto do laboratório, por meio da judicialização, ele custa muito mais aos cofres públicos do que em compras programadas para o SUS, como exemplifica o tratamento por 12 semanas com o Sofosbuvir, medicamento para hepatite C. Acompanhe:
- Custo do tratamento comprado em farmácia (quando o valor é sequestrado para que o paciente adquira por ordem judicial): R$ 263.215,68
- Custo do tratamento quando adquirido pelo Estado junto ao laboratório, para atender a ordem judicial: R$ 53.700,36
- Custo do tratamento quando é adquirido pelo governo seguindo os protocolos do SUS: R$ 13.668,48
Fonte: Secretaria Estadual da Saúde do RS