Após 21 anos, o Ministério da Saúde mudará a forma do financiamento da atenção primária à saúde, a assistência prestada pelas equipes de saúde da família e unidades básicas de saúde. A proposta é que o repasse de recursos aos municípios leve em conta, entre outros, o número de pacientes cadastrados nas equipes e o desempenho delas a partir de indicadores como qualidade do pré-natal e controle de diabetes, hipertensão, infecções sexualmente transmissíveis.
A vulnerabilidade socioeconômica dos pacientes e a distância dos municípios dos grandes centros urbanos também serão ponderados nesse novo modelo.
A iniciativa vem sendo discutida com gestores municipais e estaduais e tem gerando polêmica. Para alguns, ela pode comprometer a universalidade do SUS já que os recursos só chegarão para os pacientes cadastrados. Para outros, porém, corrige distorções e poderá medir a real cobertura na atenção básica.
A ideia do governo federal é que, depois da atenção primária, o novo modelo chegue à média e alta complexidade do SUS (ambulatórios de especialidades e hospitais).
Hoje, há dois pisos de atenção básica (PAB), um fixo e um variável. O primeiro é um valor (de R$ 23 a R$ 28 por ano) que oscila de acordo com a população do município estimada pelo IBGE.
Já o variável leva em conta o número de equipes de saúde da família que o município tem. Cada uma ganha entre R$ 7,1 mil e R$ 10,6 mil. O país tem cerca de 43 mil equipes de saúde da família. Hoje, nenhum dos dois pisos leva em conta cadastro de pacientes, produtividade, desempenho e resultados.
— Vamos colocar um viés muito pesado de equidade na questão financiamento, alocando mais recursos naqueles locais que precisam de mais verbas para atender melhor as pessoas que são mais vulneráveis — afirmou à Folha Erno Harzheim, secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde.
Segundo ele, atualmente há 93 milhões de pessoas cadastradas na atenção primária, mas os prefeitos têm recebido verbas para uma população de 150 milhões.
Um síntese da proposta foi apresentada no congresso de medicina de família e comunidade que ocorreu na semana passada em Cuiabá (MT).
Além do desempenho das equipes, o novo projeto levará em conta iniciativas como a informatização das unidades e os horários de atendimento expandidos. Atualmente há 17 mil equipes de saúde ainda não informatizadas.
A formação profissional especializada em saúde da família e atividades de promoção à saúde também somarão pontos para maior financiamento. Com isso, segundo Harzheim, o dinheiro será direcionado diretamente para atividades de saúde da família.
— Temos a lei 141 de 2012 que detalha como devem ser feitos os repasses federais para a saúde, estabelece critérios para esses repasses, mas eles nunca foram formalizados.
Ele diz que, com a mudança, será possível destinar mais recursos para a atenção primária.
— A ideia é sair de uma proporção atual de 16% do orçamento do Ministério da Saúde e chegar em torno de 21%.
O novo modelo já provoca polêmica entre os especialistas, que veem risco de comprometimento do princípio de universalidade do SUS (de atender toda a população).
— No momento em que você passa a pagar por captação (cadastro), pode deixar muita gente de fora, embora hoje, com o atual modelo, há muitos que não conseguem acessar o sistema — diz a médica de família Claunara Schilling Mendonça, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Ela cita como exemplo a experiência da unidade de saúde onde atua em Porto Alegre (RS).
— A gente tem tido 201 novos pacientes cadastrados por mês em uma população de classe média de 18 mil pessoas (que moram na região atendida pela unidade de saúde).
Muitos são egressos da saúde privada, que perderam seus planos de saúde em razão da crise econômica, fenômeno que ocorre em todo o país.
Se os novos critérios do ministério já estivessem valendo, segundo a médica, esses pacientes estariam de fora da conta do ministério.
— O que vamos fazer com as pessoas que não conseguem entrar na lista? — questiona Mendonça.
Segundo ela, atualmente há muitos problemas com o cadastro de pacientes, com duplicidade de nomes, por falhas nos sistemas de informação que precisam ser resolvidos.
Para Daniel Knupp, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, o pagamento por captação aumenta a responsabilidade dos gestores e das equipes de saúde da família e mostrará quem de fato está utilizando o sistema.
— Pode ser que o diagnóstico mostre que a cobertura seja menor do que imaginamos, mas desde que não haja diminuição do número de equipes e de recursos, me parece um bom modelo — diz.
O médico Gustavo Gusso, professor da USP, diz que na fase inicial de implantação do novo modelo é possível que alguns municípios passem a receber um valor menor.
— Mas isso estimulará os prefeitos a terem um cadastro decente de pacientes, o que deveria ser a primeira coisa de qualquer tratamento — explica.
Segundo Erno Harzheim, todas essas questões estão sendo analisadas e adequadas em conjunto com os gestores públicos. A ideia é que o modelo passe a valer a partir de 2020 com uma fase de adaptação de 12 meses.
Procurado, o Conselho Nacional dos Secretarias Municipais de Saúde, informou que as discussões estão em andamento e que não há um posicionamento oficial sobre o assunto.