Durante a gravidez do primeiro filho, Vera* teve duas surpresas: no quinto mês, uma ecografia indicou que gestava uma menina. Novo exame de imagem, no sétimo, mostrou que esperava um menino. Os médicos informaram que só poderiam ter certeza no momento em que o bebê nascesse. Se alguma inconformidade fosse constatada, precisaria ser averiguada para que se chegasse a um diagnóstico. Até o final da gestação, Vera e o marido tiveram de conviver com a incerteza e o receio quanto a possíveis problemas de saúde e malformações no feto.
Ao nascer, Luís, hoje com 19 anos, apresentava uma anomalia de diferenciação sexual (ADS) chamada hipospádia, em que há uma alteração no pênis: a uretra está mais aberta do que o normal e localizada abaixo do órgão, não na ponta. Uma cirurgia corretiva foi realizada meses depois. Conforme a severidade dessa condição, e se não houver operação e acompanhamento adequados, a criança pode se desenvolver sem conseguir urinar de pé e, na vida adulta, ficar impossibilitada de manter relações sexuais, entre outras consequências.
As ADS, que dificultam ou impossibilitam a identificação imediata do sexo do recém-nascido, têm causa genética (ligada aos cromossomos), endocrinológicas (relacionadas à produção inadequada de hormônios) ou na expressão dessas características no corpo, como era o caso de Luís. No Rio Grande do Sul, famílias em situação similar começaram a se beneficiar, na semana passada, de um provimento editado pela Corregedoria-Geral da Justiça, que permite aos pais o registro tardio de crianças com ADS.
Antes, em alguns casos, os bebês eram registrados com nome e especificação do sexo — feminino ou masculino —, e depois era necessário trocar essas informações, a depender da conclusão das avaliações — o que, além de trâmites burocráticos, poderia acarretar também um significativo abalo emocional. Com o provimento jurídico, resultante de iniciativa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), os pais podem obter um documento neutro, sem especificação de sexo, e, mais adiante, com o diagnóstico já conhecido, providenciar a troca das informações da certidão de nascimento levando apenas um atestado médico ao cartório, evitando enfrentar meses de espera.
Cerca de 30 casos por ano no Estado
A literatura científica estima um caso de ADS a cada 4,5 mil nascidos vivos no mundo. No Rio Grande do Sul, são cerca de 30 ocorrências por ano. O mais comum é que as ADS sejam constatadas no nascimento, e não durante o acompanhamento pré-natal. Em geral, com exames diversos, é possível assegurar o sexo do bebê em cerca de duas semanas.
No HCPA, o Programa de Anomalias da Diferenciação Sexual (PADS), centro de referência no Estado e no país, reúne uma equipe multidisciplinar, com cirurgião e endocrinologista pediátricos, geneticista, psicólogo, pediatra, neonatologista, radiologista, ginecologista, urologista e patologista, entre outros profissionais, para avaliar os resultados. Enquanto paira a dúvida, os pais são orientados a chamar o filho de "bebê", "bebê da mãe", "bebê do pai".
— A primeira explicação que dou às famílias é a seguinte: quando a criança ainda é um "feijãozinho", a genitália, potencialmente, pode ser feminina ou masculina. Isso acontece com todo mundo. De acordo com nossa carga genética e com os hormônios é que vai ocorrer a diferenciação entre menino ou menina. Se não ocorrer a diferenciação, o bebê não vai ter características suficientes para a determinação do sexo — explana Eduardo Corrêa Costa, coordenador do PADS.
Quando a criança ainda é um "feijãozinho", a genitália, potencialmente, pode ser feminina ou masculina. Isso acontece com todo mundo. De acordo com nossa carga genética e com os hormônios é que vai ocorrer a diferenciação entre menino ou menina. Se não ocorrer a diferenciação, o bebê não vai ter características suficientes para a determinação do sexo.
EDUARDO CORRÊA COSTA
Coordenador do PADS
Luís segue frequentando periodicamente o programa multidisciplinar do HCPA, rotina de grande parte desses pacientes.
— Desde pequeno, fui bem instruído. Meus pais e os médicos nunca me esconderam nada, sempre explicaram de um jeito que eu entendesse — conta o jovem.
Alguns pacientes precisam tomar medicação pelo resto da vida. Entre as ocorrências mais comuns de ADS está a hiperplasia adrenal congênita — o bebê tem o clitóris tão aumentado que parece um pênis. Os lábios vaginais estão fechados, com apenas um furinho para a saída do xixi embaixo, e a pele é tão rugosa e escurecida que parece uma bolsa escrotal. Ao avaliar o recém-nascido, o médico não consegue localizar os testículos. Em exames, constata-se que o bebê tem útero, ovário e trompas.
Trata-se, portanto, de uma menina com um aumento da função da glândula adrenal, que produziu andrógenos em grande quantidade e provocou o desenvolvimento da genitália masculina. Em geral, realiza-se a cirurgia corretiva o mais cedo possível, entre seis meses e um ano de idade. Alguns pacientes precisam se submeter a mais de um procedimento.
— Se bem tratada, ela vai se desenvolver com características fenotípicas de menina. Se não se tratar, pode se virilizar, desenvolvendo barba, queixo mais masculino e pomo de adão — exemplifica Costa.
Descoberta pode ser durante adolescência ou vida adulta
Acontece também de a ADS se manifestar apenas na genitália interna. Muitas pessoas descobrem essa condição quando adolescentes ou adultas. Há crianças que não adentram o período da puberdade — a menina não menstrua ou suas mamas não crescem, por exemplo — ou homens e mulheres que, quando desejam ser pais, esbarram em problemas de fertilidade. Se os casos são investigados por especialistas, acabam sendo descobertas as ADS.
Costa destaca a importância de os profissionais que lidam com recém-nascidos estarem bem preparados para reconhecer quaisquer características que possam sugerir casos de ADS. Três pontos fundamentais precisam ser contemplados no acompanhamento das famílias, de acordo com um estudo da psicóloga do PADS, Tatiana Prade Hemesath: realização precoce da cirurgia — com adequação dos genitais externos —, aceitação da criança no sexo que lhe for designado (em conformidade com as características do organismo) e reconhecimento da criança pela sociedade com aquele sexo que lhe foi determinado.
— As famílias devem ser encaminhadas para um centro de referência. Se levarmos em consideração só a genitália externa, podemos ter um resultado catastrófico no futuro — comenta Costa.
*Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.