Durante a gestação de Álvaro Luis Gonçalves Santos, era comum as pessoas se aproximarem de sua mãe e perguntarem se ela não temia que o filho viesse ao mundo defeituoso, com algum déficit mental ou mesmo nem nascesse. Neste sábado (23), Álvaro chega aos 30 anos de idade como um caso de sucesso – da medicina e pessoal. Primeiro bebê de laboratório do Rio Grande do Sul, ele se tornou, na vida adulta, um campeão de aprovação em concursos públicos. Passou em mais de 20 apenas nos últimos dois anos.
Nada mal para alguém que, por causa do ineditismo da gestação, teve o nascimento cercado por receios. A mãe de Álvaro, a técnica em enfermagem Iara Gonçalves Ferreira dos Santos, lembra que o desconhecimento que havia na época sobre as recém-desenvolvidas técnicas de reprodução assistida fazia as pessoas proferirem barbaridades:
— Morávamos em Tramandaí, uma cidade pequena. Por causa do preconceito e do tabu, perguntavam se eu não tinha medo de ele nascer diferente. Não posso culpar essas pessoas, mas não era uma coisa agradável de escutar. Posso dizer que, algumas vezes, telefonei chorando para meu médico, o doutor Alvaro Petracco.
Iara e o ex-marido, João Luis Gomes dos Santos, perseguiram o sonho de ter um filho durante cinco anos. Mas Iara sofria de endometriose, uma condição que tornava difícil engravidar. Depois de quase três anos, a médica que os acompanhava inicialmente deu o caso por encerrado, dizendo que não havia mais o que fazer. O casal perseverou e foi parar nas mãos de Alvaro Petracco e Mariangela Badalotti, que vinham trabalhando, no Hospital São Lucas da PUCRS, para trazer ao Estado os métodos que ganhavam manchetes mundo afora. Também faziam parte do grupo Marcelo Moretto, Francisco Cancian e Maria Izabel Lopes.
Petracco (que hoje dirige o Fertilitat Centro de Medicina Reprodutiva em parceria com Mariangela) relata que, apesar de o primeiro bebê de proveta ter nascido em 1978, na Inglaterra, a técnica não se disseminou logo. Foi só na segunda metade da década de 1980 que começou a deslanchar. Naquele momento, a dupla gaúcha vinha trabalhando, em silêncio, para dominar a novidade. Foram cinco anos de estudos e experimentos até que Álvaro nascesse.
— As coisas eram muito incipientes e experimentais quando começamos. O Hospital São Lucas nos deu uma área para desenvolver isso. Montamos um laboratório de fertilização e importamos material dos Estados Unidos, porque não tinha nada no Brasil naquela época. Começamos do zero, aprendendo. Não se tinha conhecimento sobre isso. Quem fazia, escondia — conta Petracco.
Os profissionais tentavam, por exemplo, identificar óvulos nas pacientes que vinham ao hospital para algum procedimento cirúrgico. Também trabalhavam com espermatozoides, buscando descobrir como fazê-los sobreviver nos meios de cultura que eles mesmos tinham de fabricar. Em 1988, sentiam-se prontos para dar o grande passo.
Iara foi a primeira paciente. Os médicos escolheram um método hoje em desuso, a transferência intratubária de gametas (GIFT), que havia sido descrita por um pesquisador argentino. Não era uma técnica de fertilização in vitro (quando a fertilização do óvulo pelo esparmatozoide ocorre em laboratório, e só depois o embrião é implantado na mulher), razão pela qual Álvaro não é propriamente um bebê de proveta. No GIFT, o óvulo (retirado por laparoscopia) e o espermatozoide eram preparados em um meio de cultura e implantados ao mesmo tempo na trompa da mulher, onde deveria ocorrer a fertilização.
Na primeira tentativa com o GIFT, Iara engravidou. Foi uma gestação tranquila, mas ao mesmo tempo cercada de expectativa.
— Como se tratava de uma técnica nova, era um ponto de interrogação. O primeiro bebê de proveta foi escondido até o final, porque ninguém sabia o que ia acontecer. Nasceu e só foram avisar no outro dia, depois de verem que a criança estava bem, respirando e era normal. Para nós também era uma incógnita — relata Petracco.
Batizado de Álvaro em homenagem ao médico, o menino nasceu saudável, com 2,8 quilos e 40 centímetros, em 23 de fevereiro de 1989. No dia seguinte, uma foto dele com os pais no hospital ocupava toda a primeira página de ZH. Letras garrafais anunciavam: "Nasce o primeiro bebê gaúcho de laboratório". Um dia, quatro anos depois, Iara comentou que estava se sentindo mal e Alvinho disparou:
— Mãe, tu estás grávida.
Ela achou impossível, mas a percepção do menino acabou por se confirmar. Petracco observa que um dos melhores tratamentos para a endometriose é, justamente, uma gestação. Assim, Iara atribui ao GIFT não apenas a possibilidade de ter tido Álvaro, mas também Gabriela, hoje com 25 anos.
— Com certeza, o que possibilitou a segunda gestação foi a primeira. Posso dizer que o procedimento me permitiu ter dois filhos, apesar de a segunda gravidez ter vindo naturalmente — afirma ela.
"Meu sonho grande era atuar no combate à corrupção"
Em 2014, quando ZH fez uma reportagem sobre os 25 anos do marco médico que foi o nascimento de Álvaro, o rapaz estava formado em Economia e trabalhava como analista de investimentos no mercado financeiro. Justamente naquela época, estava se operando uma transformação nele. Álvaro percebeu que não estava feliz por atuar num setor "meramente especulativo", sem impacto positivo para a sociedade. Concebeu o plano de colocar suas habilidades a serviço do poder público, de preferência na função de auditor fiscal.
— Ao longo dessa caminhada, vi que o meu sonho grande era atuar no combate à corrupção — define.
Para atingir esse objetivo, passou os últimos cinco anos combinando o trabalho (atua como oficial legislativo na Câmara Municipal de Novo Hamburgo) a uma pesada rotina de preparação. Acordava todos os dia às 5h para debruçar-se sobre os livros, aos fins de semana dedicava 12 horas por dia a estudar, enfurnava-se em todos os feriados e usava férias inteiras, ano após ano, para se afiar ainda mais. Nesse processo, resolveu mais de 40 mil exercícios.
Os frutos vieram em profusão. No fim do ano, uma mesma edição do Diário Oficial do Estado trazia três vezes o nome de Álvaro, anunciando sua aprovação nos concursos de técnico tributário da Receita Estadual, assistente da Receita Estadual e analista de planejamento da Secretaria de Planejamento. Ele também passou para o o cargo de auditor de controle externo no Tribunal de Contas do Estado de São Paulo e para a função dos sonhos: auditor da Contadoria e Auditoria Geral do Estado da Secretaria da Fazenda gaúcha. Ainda arranjou tempo para ser aprovado no último vestibular da UFRGS, no curso de Ciências Sociais.
— O meu coaching me apelidou de alien pelas aprovações que obtive. Aí, quando ele descobriu que sou o primeiro bebê de laboratório, deu risada dizendo que enfim entendia porque eu era diferente — diverte-se Álvaro.
Com os objetivos atingidos, o economista deu por encerrado o período frenético de estudos e agora quer passar mais tempo com a namorada e a família, um convívio que foi sacrificado por causa da dedicação aos estudos. Vai fazer isso neste fim de semana, por exemplo, no churrasco de comemoração dos 30 anos, celebrado na casa da avó, em Imbé.
Os cinco anos de esforço e determinação que Álvaro dedicou à realização de seu sonho fazem lembrar dos cinco anos em que os pais fizeram de tudo para que ele nascesse. Mas o rapaz rejeita a comparação:
— Olha, são coisas bem diferentes, ao meu ver. O lapso temporal é parecido mesmo, só que uma coisa é bem maior do que a outra. Ter um filho, para mim, é o sentido da vida.