Foram cerca de 300 metros percorridos a passos rápidos entre o centro cirúrgico do Hospital São Francisco e o Pavilhão Pereira Filho, ambos dentro do complexo da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Já era madrugada de uma terça-feira fria na Capital enquanto o médico José Camargo e o pneumologista Dagoberto Godoy zanzavam, em pânico e totalmente calados, pelo pátio da instituição carregando uma bacia metálica. Dentro do recipiente esterilizado, imerso em soro gelado, guardavam um pulmão que seria utilizado no primeiro transplante do órgão feito na América Latina. A cena ocorreu há exatos 30 anos, no dia 16 de maio de 1989.
O primeiro latino-americano a passar pelo procedimento foi o agricultor Vilamir Westerich, 27 anos. Internado desde outubro de 1988 na Santa Casa, o catarinense de Vargeão do Oeste tinha no transplante sua única chance de sobreviver e deixar a casa de saúde. Sofrendo de fibrose pulmonar, problema que enrijece o órgão e provoca falta de ar, ele ingressou na Santa Casa já bastante debilitado e fazendo uso de oxigênio havia três anos, relembra Camargo, hoje também colunista de GaúchaZH e do caderno Vida.
A viagem para Porto Alegre em busca de ajuda havia sido recomendada por Eduardo Sahão, ex-residente do serviço e sabedor do projeto de transplante pulmonar em elaboração no Pavilhão Pereira Filho, hospital de tórax da instituição. Nessa época, Vilamir era o único na fila do transplante.
— A presença do Vilamir representava um acréscimo de responsabilidade e angústia para o grupo clínico-cirúrgico, porque agora havia uma pessoa cuja sobrevivência dependia de o hospital ser capaz de substituir seus pulmões — relembra Camargo.
Passados meses da internação, a boa notícia finalmente chegou: tinham encontrado um pulmão compatível. O jovem de Novo Hamburgo, de 24 anos, havia se declarado, pouco tempo antes, doador. Com a autorização da família, o paciente em morte encefálica foi encaminhado do Pronto-Socorro para o São Francisco, onde teve córneas, pulmão e rins retirados e encaminhados para diferentes receptores.
Com a adrenalina a mil, Camargo e sua equipe fizeram todos os preparativos e realizaram o procedimento de implante. Do começo ao fim de todo o transplante, somaram-se cinco horas, nas quais o silêncio só foi quebrado ao final do processo.
— O comando de um procedimento desses é um exercício de solidão. Enquanto se cumpriam as etapas anunciadas, o silêncio era absoluto. Quando o pulmão expandiu, oxigenou e ficou maravilhosamente corado, aí houve euforia generalizada. Todos falavam ao mesmo tempo — recorda Camargo.
Após o período de internação pós-transplante, Vilamir retomou sua vida. Viajava para Porto Alegre de tempos em tempos para consultar com Camargo e voltou a praticar atividades antigas.
— Houve uma época em que ele cismou que teria uma vida normal. Ele era muito trabalhador, então, disse que ia viajar e dirigir o caminhão de novo. Comprou um oxigênio pequeno e adaptou atrás do banco do motorista e viajava assim. Eram trechos curtos, mas ele tinha essa teimosia — diz a filha mais velha, Patricia Westerich, que na época do transplante tinha cinco anos.
Desse período, a empresária, que hoje mora em Macaé, no Rio de Janeiro, recorda dos três tubos de oxigênio próximos da porta da varanda e das nebulizações diárias pelas quais o pai passava diariamente.
— Para nós, o transplante foi uma vida. Foi a possibilidade de ter irmãs, foi maravilhoso. E o doutor Camargo? Ele tem que viver 200 anos, e operando. A gente cresceu ouvindo nome dele, era tipo um super-herói. Ele tem nosso carinho, respeito, admiração e gratidão — diz, emocionada.
Vilamir teve mais duas filhas após a cirurgia pioneira e morreu em agosto de 1999, vítima de um enfisema, pois voltou a fumar.
Esperança do transplante no Sul
Eram 8h5min do dia 5 de abril de 2019 quando o celular de Leila Suely Meneses de Carvalho, 44 anos, tocou. Ela interrompeu o preparo do café da manhã para ouvir a notícia que tanto aguardava: havia a possibilidade de realizar o transplante de pulmão.
A cirurgia seria o alento para a comerciante nascida em Teresina, no Piauí, que desde julho de 2018 fixou residência em Porto Alegre em razão dos problemas de saúde. Com diagnóstico tardio de Síndrome de Sjogren e esclerose sistêmica, receber um novo pulmão era a única opção para se libertar dos tubos de oxigênio e melhorar a qualidade de vida, completamente prejudicada pelos pulmões fibrosados.
— Tinha muita falta de ar, não conseguia tomar banho, escovar os dentes. Agora, comecei a caminhar bem e o uso do oxigênio reduziu em 50% — relembra.
Sem sucesso nas tentativas de transplante em São Paulo, ela se mudaria para Porto Alegre em julho, onde passou por exames e avaliações que atestaram que ela era candidata ao procedimento. Em 11 de setembro, seu nome começou a integrar lista de espera por um órgão.
Depois de algumas intercorrências no pós-transplante, Leila finalmente teve alta no último dia 3. Atualmente, desdobra-se em uma rotina que requer exames e consultas quinzenais e reabilitação três vezes por semana. Ainda não pode voltar à terra natal, espera conseguir liberação para uma visita aos parentes — quer conhecer três netos que nasceram durante sua estada aqui na Capital — passado o período de reabilitação, que leva seis meses. Voltar em definitivo, estima, pode levar cerca de três anos.
— Cheguei aqui para ficar poucos dias e Deus me abençoou. Me sinto privilegiada de já ter conseguido fazer o transplante — afirma.
A evolução dos pioneiros
De Vilamir a Leila, algumas coisas mudaram: a preservação do órgão, agora, é diferente. Se em 1989 ele era mantido murcho, hoje é colocado em uma solução e permanece inflado.
— Mas a sequência do implante é mais ou menos a mesma — garante Camargo.
Os cuidados pós-operatórios, comandados pelo Sadi Schio e seu grupo de apoio, também evoluíram muito, incluindo o controle da rejeição e prevenção de complicações tardias, justificando que 90% dos transplantados estejam vivos no fim do primeiro ano e que a sobrevida em cinco anos alcance 65%, reforça Camargo.
Quem também mudou foi o tamanho da fila de espera por um transplante. Atualmente, oscila entre 60 e 70 pessoas, todas elas já debilitadas. Camargo explica que uma das indicações para o procedimento é quando o risco de morrer da doença evolutiva supera o do próprio transplante.
— As pessoas que entram na lista têm, geralmente, uma expectativa de vida menor do que 18 meses. E essa lista se renova ou por transplante, ou por morte. Espera-se que, em um programa de transplante que tenha reconhecimento social adequado, menos de 10% das pessoas morram na lista de espera. Tivemos momentos no Estado em que tínhamos 30% de mortes na lista de espera. Esta situação é devastadora para todos os envolvidos, especialmente, para quem está na expectativa de receber um órgão.
O transplante de pulmão no RS
- De 1989 para cá a equipe de Camargo já fez 640 transplantes, o que corresponde a aproximadamente 52% de toda a experiência brasileira.
- Em 1993, novo pioneirismo: foi feito o primeiro transplante duplo de pulmão da América Latina.
- Em 1999, a equipe de Camargo realizou a primeira cirurgia de transplante pulmonar com doadores vivos feita fora dos Estados Unidos. A conquista completa 20 anos em setembro, e, desde então, 40 transplantes com doadores vivos foram realizados na Santa Casa de Porto Alegre.
- Em 2018 o grupo alcançou um índice invejável, de um transplante pulmonar por semana.
A lista de espera por pulmões no RS em 2019*
- Janeiro 85
- Fevereiro 82
- Março 75
- Abril 78
*Dados fornecidos pela Secretaria Estadual da Saúde