A proposta que altera a política nacional de drogas do Brasil, aprovada no Senado na última quinta-feira (15) depois de seis anos de tramitação no Legislativo e agora à espera de sanção do presidente Jair Bolsonaro para começar a valer, traz pelo menos duas novidades não livres de polêmicas: a internação involuntária por até 90 dias de dependentes químicos e a inserção das comunidades terapêuticas como vias de tratamento e recuperação dos usuários — hoje, funcionam como centros de reabilitação calcados na religião, abstinência e trabalho.
O projeto data de 2013 e é de autoria do ex-deputado federal, hoje ministro da Cidadania, Osmar Terra. Há especialistas da área que avaliam a nova diretriz como um retrocesso, incompleta e higienista, por não focar na redução de danos e na saúde das pessoas, mas, sim, somente na abstinência e na internação.
E há a corrente dos que acreditam que esta é uma alternativa possível para os usuários classificados como toxicômanos, aqueles que fazem uso excessivo de drogas.
Veja os pontos polêmicos e as opiniões de especialistas
Internação involuntária
Ocorre sem o consentimento do paciente. Pode ser solicitada por familiares, servidor público das áreas de saúde e assistência social e médicos e precisa ser aceita por um psiquiatra. O usuário de drogas poderá ficar internado por até três meses em abstinência para desintoxicação. Para parar esta modalidade de tratamento, será preciso pedir autorização a um médico.
Esta orientação é contra as ideias divulgadas, em março deste ano, pelos Estados membros da Organização das Nações Unidas (ONU), demais organismos da ONU e estudiosos dos direitos humanos. Essas entidades e pessoas lançaram um conjunto de atitudes padrão legais e internacionais sobre como tratar a dependência em drogas, com o objetivo de traçar outro caminho no enfrentamento ao problema. Na reunião, que aconteceu na Comissão sobre Narcóticos em Viena, na Áustria, Judy Chang, diretora-executiva da Rede Internacional de Pessoas que Usam Drogas, afirmou que é o momento de privilegiar a dignidade humana, e não o isolamento social.
A ONU apontou que "os países devem garantir a disponibilidade e a acessibilidade dos serviços de redução de danos, que devem ser propriamente financiados, adequados às necessidades dos grupos vulneráveis e respeitando a dignidade humana".
Flavio Pechansky, chefe do Serviço de Psiquiatria de Adição do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), explica que a internação, sendo ela voluntária ou involuntária, é sempre traumática porque implica uma mudança drástica em relação a um comportamento. Ele destaca ainda que esta metodologia dificilmente fará com que o paciente entenda a necessidade de ser internado e que tal medida deve ser entendida como drástica, e não sistêmica.
— Este tipo de internação precisa ser colocado em prática quando o indivíduo está pondo em risco a própria vida ou a de alguém. Esta decisão precisa ser muito criteriosa e avaliada medicamente. Mesmo do ponto de vista da Medicina, ela funciona pouco, porque o tratamento de recuperação é longo e pressupõe que o usuário entenda os danos e os riscos causados. Manter alguém de maneira involuntária em um lugar por mais de cinco dias é uma agressão — defende Pechansky, que ressalta a importância da necessidade de modificação dos desequilíbrios químicos e emocionais do paciente para uma real efetividade do tratamento:
— O potencial terapêutico de uma internação não está em tirar o indivíduo do contato com a droga, mas colocá-lo em contato com uma equipe multidisciplinar que dê os subsídios e técnicas para que esta pessoa tenha condições de seguir nas próximas etapas do tratamento.
— Deixar as pessoas num ambiente fechado e não fazer nada não modificará uma série de desequilíbrios químicos e emocionais. Elas vão sair como entraram. Focar na abstinência como solução é desconsiderar os problemas que levam a pessoa a tornar-se um usuário (de droga) — avalia Antonio Nery Filho, professor aposentado da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e criador do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (Cetad).
— É necessário entender o motivo do sofrimento, o que leva a pessoa a usar drogas, porque não adianta cortar o acesso se as causas do uso, como decepção no trabalho ou amorosa e perda de alguém, continuam vivas no indivíduo e não sendo tratadas. Aqueles que fazem uso de entorpecentes fazem isto para suportar o insuportável da vida. Isso precisa ser levado em consideração no tratamento — diz Filho.
O professor ressalta ainda uma iniciativa criada por ele e outras pessoas em Salvador, na Bahia: o Consultório de Rua, que visava a política de redução de danos. Essa tática implica o uso de estratégias que buscam diminuir o impacto biológico ou social do uso das drogas sem, necessariamente, interrompê-lo. Neste projeto da capital baiana, os profissionais da saúde iam até os usuários, estabeleciam contato e um elo para que eles entendessem a importância de realizar determinados exames, consultas e até mesmo cirurgias.
Método é necessário em casos extremos, defende psiquiatra
Já Ronaldo Laranjeira, médico do departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), defende o uso da internação involuntária no caso de pessoas que se mostrem agressivas.
— Aí, as pessoas precisam deste tipo de intervenção, mas ela não pode ser feita em massa, porque nem temos estrutura para isso. A internação involuntária é para situações extremas e leva em consideração um dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) que afirma que cada pessoa deve receber serviço de acordo com sua necessidade. Além disso, todos os países democráticos têm esse dispositivo na lei para proteger o indivíduo e a sociedade — diz Laranjeira.
Ele afirma ainda que a análise feita pela ONU – de valorização da dignidade humana e da socialização – em relação à política de drogas não diz respeito à involuntariedade da internação, mas aos casos de clínicas de reabilitação que realizam trabalho forçado ou não remunerado de seus pacientes. O professor da Unifesp também observa que a política de redução de danos praticada no Brasil nos últimos 20 anos piorou o quadro dos usuários do país:
— Parte da sociedade quer manter por ideologia essa política que é preguiçosa. Preguiçosa por não traçar um plano de tratamento para o usuário, por não utilizar técnicas psicológicas que visam a abstinência.
Comunidades terapêuticas
Outra novidade da nova política nacional de drogas é a incorporação das comunidades terapêuticas ao Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad). Estas entidades, que já recebem dependentes químicos, não se consideram de cunho social nem de saúde, e sim estabelecimentos filantrópicos.
Atualmente, existem mais de 1,8 mil comunidades terapêuticas espalhadas pelo país. Relatório de 2017 da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas encontrou violações de direitos humanos em todas as 28 unidades visitadas, como punições físicas, retenção de documentos e trabalhos forçados, além da falta de equipes mínimas essenciais ao tratamento.
Apesar das opiniões divergentes, os três especialistas ouvidos nesta reportagem concordam que esta incorporação abala a qualidade do tratamento dispensado aos usuários de drogas. Chefe do Serviço de Psiquiatria de Adição do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Pechansky explica que estes espaços buscam modificar a postura e as ações dos internos, mas que isso não tem correlação clínica:
— Há comunidades sérias que contam com visita regular de médico, assistente social etc. Por outro lado, muitas não contam com o apoio de equipes multidisciplinares. E como elas são lidas como entidades filantrópicas, o grau de regulação e avaliação técnica sobre a qualidade terapêutica delas é muito vago e baixo.
Já o professor Filho resgata a história destas comunidades e explica que elas se constituíram como espaços privados, que se apresentam como de utilidade pública e que têm como valor norteador a religião — na maioria das vezes, a evangélica. Elas se opõem ao consumo de drogas e se apoiam na proposta de tolerância zero.
— As comunidades lidam com problemas de saúde pública sem passar por qualquer tipo de fiscalização da saúde. Outro problema deste projeto é que ele passará a repassar a estas casas, que trabalham na esfera privada, verba pública, já que elas passaram a fazer parte de uma política pública. Elas ganham uma força política muito grande, mas eles não apresentam a formação que deveriam para lidar com usuários de drogas — afirma o criador do Cetad.
O médico Laranjeira, por sua vez, relata que a escassez de indicadores de qualidade destes espaços é grave:
— Do jeito que essa questão está sendo implementada no Brasil, não seria feito em lugar nenhum do mundo, não seria permitido. O governo está dando dinheiro a lugares que não apresentam indicadores qualitativos do trabalho desenvolvido lá dentro.