O próximo gole de bebida alcoólica que Daniel Bartelle deverá tomar será o de um brinde para comemorar, após muito esforço e uma dose de sorte, em outubro de 2020, o bom desempenho em um dos maiores desafios de sua vida: bater a marca pessoal, se possível, em mais uma etapa do Ironman disputada no Havaí (EUA). Decisão radical para um entusiasta de festas e da vida noturna, a abstinência de álcool foi motivada pela dedicação a uma das mais demandantes práticas esportivas: o triatlo.
Bartelle, atleta amador, obedece a uma agenda atopetada de horas de corrida, natação, ciclismo e treinamento funcional – e também de restrições. Para dar conta da média de quase 20 horas semanais de treinos – às vésperas de uma prova, a intensidade se multiplica, e somente a quantidade de pedaladas pode chegar a 15 horas por semana –, o engenheiro civil de 44 anos precisa se alimentar e dormir bem. E tudo isso é conciliado, ainda, com a vida profissional e social. Quando decidiu se dedicar com ardor ao esporte, ficou claro que álcool e bom rendimento não combinavam em nada.
Desejoso de dar vazão a toda a energia que armazenava, e pensando também em prevenir futuros problemas de saúde, ele seguiu a sugestão médica de começar no triatlo após se submeter a cirurgias nos joelhos. Nunca nadara na vida, não pedalava desde a infância, mas achou uma boa ideia. Os copos de cerveja, caipirinha e vinho foram trocados pelos de água sem gás, só com gelo, sem limão.
– Imagina: de uma hora para outra, você sai com seus amigos e não bebe. “Como assim?” Parece que o cara é um ET – diverte-se Bartelle. – Qual o problema de ir a um evento e não beber? Não dá para se divertir sem beber?
São variadas as motivações de quem decide suspender o consumo de álcool: emagrecer, livrar-se da ressaca, melhorar o sono, render mais no trabalho e nas outras tarefas do dia seguinte. Em alguns casos, a sobriedade é o bom senso que se impõe, como para quem está grávida ou provendo o aleitamento. Em uma sociedade em que o álcool, junto da comida, é um dos principais elementos agregadores, presente em encontros regulares de famílias e amigos, a tarefa pode se tornar extremamente desafiadora – como enfrentar a curiosidade, os constantes questionamentos e o incentivo dos demais, com seus drinks alcoólicos em punho, sobre a decisão de se contentar apenas com água, refrigerante ou suco?
Nesta reportagem, ZH conta a história de quatro personagens que desistiram de beber: além de Bartelle, motivado pela superação física, narram suas motivações o chef de cozinha Pedro Luis Machado da Silveira, 46 anos, a universitária Gabriele Loureiro Bruschi, 20, e a jornalista Caren Natália Souza da Silva, 39.
O fígado agradece
Bartelle não se permite descanso: treina todo dia. Sem álcool, ficou evidente uma das maiores mudanças: a determinação para acordar ainda de madrugada para treinar – e muito bem disposto. Algo impensável para quem, no passado, bebia todos os finais de semana e em alguns dias úteis e se considerava “forte para tudo”. Mas, nas manhãs seguintes, o hábito cobrava a conta: dor de cabeça (tomava um analgésico antes de dormir, já prevendo o incômodo, e outro ao acordar), sonolência, indisposição. Refeições leves e saudáveis não apeteciam, e o engenheiro acabava se alimentando mal. Os exercícios eram eventuais, com claros prejuízos: sentia dificuldade para correr, ficava ofegante, logo cansava. O ciclo de mau comportamento se encerrou em 2015. Quando começou no triatlo, almejava provas curtas, até se empolgar a ponto de encarar as exaustivas disputas de um Ironman completo (há também a modalidade de “meio” Ironman, na qual ele também compete).
Mudou tudo. Tenho energia para trabalhar, para pensar, e não é só em um momento do dia. Enquanto estou fazendo exercício, estou pensando. A cabeça funciona enquanto trabalho o corpo.
DANIEL BARTELLE
Engenheiro civil e triatleta
– Mudou tudo. Tenho energia para trabalhar, para pensar, e não é só em um momento do dia. Enquanto estou fazendo exercício, estou pensando. A cabeça funciona enquanto trabalho o corpo – conta Bartelle.
Os compromissos sociais foram reduzidos, para não comprometer o repouso e também por ter abandonado o álcool. Ao negar tantos convites, os amigos reclamaram e ainda reclamam, mas hoje já entendem melhor o “novo” Daniel Bartelle. Antes de tentar se classificar para o Ironman havaiano, o engenheiro tem outras provas previstas, no Brasil e no Exterior. A hora é agora para tirar do corpo o máximo que puder, justifica. Para beber, haverá tempo de sobra em décadas à frente, se for o caso.
– Se hoje, que estou com 44, é difícil acordar de manhã, imagina aos 70.
Bartelle é acompanhado pelo treinador de corrida e triatlo Lucas Pretto. O preparador físico explica que o grande problema do álcool é a dificuldade que o fígado tem de metabolizá-lo e expeli-lo. A atividade física, por sua vez, também exige bastante desse órgão. O metabolismo fica mais lento, aumentam os níveis de cortisol, o hormônio do estresse, e a recuperação muscular é atrapalhada.
– Com o organismo avariado, o cérebro já não funciona tão bem. Para fazer um esforço, qualquer esforço que exija minimamente do seu corpo, o organismo precisa trabalhar de forma eficiente, e o álcool rouba energia. O álcool vai fazê-lo suar mais, aumenta o risco de cãibras e contraturas. E a noite de sono é muito prejudicada – enumera Pretto.
Atletas estão sempre mirando melhores performances, ressalta o treinador, levando os dias em uma intensidade alta. Muitos acabam recorrendo a doses de álcool para relaxar e dar uma “baixada na bola” depois de tanto esforço empreendido nos treinamentos. Pretto recomenda uma prática que pode parecer inocente diante do apelo de um cálice de tinto ou de uma encorpada cerveja artesanal – mas, garante, funciona para muitos, e para ele próprio inclusive. A ideia é trocar o álcool por um chá, concentrar-se no preparo, no sabor, e fazer disso um ritual.
O esporte ajuda a encontrar a moderação. Você presta muita atenção no seu corpo quando está treinando e começa a relacionar isso com fatores do dia a dia: Dormi bem? O que eu comi? Bebi quanto?
LUCAS PRETTO
Treinador de corrida e triatlo
– Gosto de pedir para meus alunos perceberem, no dia seguinte, como se sentem quando acordam para começar o dia. Às vezes, não é só a performance física. O atleta amador tem coisas que vão muito além disso. Se bebe, ele até consegue fazer o treino, mas depois fica mais cansado. E ele não vai querer passar o dia destruído – pondera o professor. – É muito difícil alguém acordar de ressaca e querer treinar. Quando vejo alguém correndo no domingo às 18h, no calor do verão, penso: “Esse bebeu todas ontem”. Convivi com algumas pessoas que acordavam com dor de cabeça e ressaca e conseguiam treinar, mas a tendência do exercício é aumentar a dor de cabeça – continua Pretto, explicando que a chance de lesões também aumenta.
O preparador físico, triatleta profissional por uma década e hoje na categoria amadora, não prega o banimento do consumo de álcool por parte de praticantes de exercícios, mas sim o comedimento:
– É bom, é agradável, não é prejudicial com moderação. Acho que o esporte ajuda muito a encontrar a moderação. Você presta muita atenção no seu corpo quando está treinando e começa a relacionar isso com fatores do dia a dia: dormi bem? O que eu comi? Bebi quanto?
Em termos nutricionais, a bebida alcoólica não acrescenta nada de bom. Tem as chamadas calorias vazias, sem qualquer benefício à saúde de quem as ingere – simplesmente aumenta o cômputo geral do que é consumido no dia. Largar o álcool pode representar perda de peso, segundo o nutricionista Matheus Motta. Depende do tipo de bebida que você prefere: a cerveja, por exemplo, contém mais carboidratos do que um destilado como a vodca ou a cachaça. Um grande bebedor de cerveja pode sentir mais o impacto se zerar a ingestão, portanto.
Motta também recomenda a substituição por chás, além, obviamente, da água, o combustível natural para o equilibrado funcionamento do organismo. Sucos naturais são outra opção, mas quem tem a preocupação de manter o peso ou de eliminar quilos extras não pode se esquecer de que alguns destes representam um considerável incremento calórico quando ingeridos em excesso. Em uma vida sem álcool, sublinha Motta, os benefícios são muitos.
– Você não vai ter intoxicação, nem ressaca, nem dor de cabeça, tampouco desidratação – elenca o nutricionista, alertando também para os riscos do excesso a longo prazo.