Em 19 de abril de 2018, autoridades de Santa Maria e do Estado reconheciam que o município enfrentava um surto de toxoplasmose. Um ano depois de o pânico ter chegado à população, principalmente entre as mulheres gestantes, ainda não se sabe o que fez a cidade alcançar 902 registros da enfermidade - dado do último levantamento, de novembro do ano passado.
O episódio alcançou o título de maior surto mundial da doença – o município paranaense de Santa Isabel do Ivaí era o recordista até maio de 2018, com 426 casos. A investigação sobre o motivo de propagação da doença, causada pelo protozoário Toxoplasma gondii, não acompanhou o mesmo ritmo, colocando sobre o empenho coletivo das autoridades envolvidas uma dúvida que persiste até hoje em parte da população.
À época, o consumo de água foi a primeira suspeita, colocando em xeque o serviço da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), que reitera: "as provas e exames comprovam que não há qualquer relação entre a água e a doença". Desde então, uma rotina se estabeleceu na comunidade: cuidados ao lavar hortaliças e no cozimento de carnes, no consumo de água (fervida e mineral) e nas lavagens de caixas d'água, que passaram a ocorrer com uma frequência maior, tornaram-se hábito.
Já o discurso da prefeitura mudou com o tempo. O prefeito Jorge Pozzobom, que, em abril de 2018, chegou a dizer a GaúchaZH que havia muito "alarmismo", hoje tem um discurso bem mais comedido:
— Foi algo muito ruim e triste o que aconteceu com Santa Maria. E, por isso, temos uma obrigação de aprender e mudar os nossos cuidados. Foi o maior surto da história do mundo e não podemos abrir mão de entender essa lição — disse Pozzobom, ao comentar sobre a passagem de um ano do surto.
Para Pozzobom, a prefeitura foi atuante e não se omitiu, e as falhas são culpa dos governos federal e estadual.
— Não houve, em momento algum, omissão do poder público municipal. Agimos com base no tripé da investigação, do tratamento e da prevenção. O fato é que, na maioria do tempo, fomos abandonados pela União e pelo Estado.
O prefeito avalia que o momento é de cautela e de manter os cuidados com a ingestão de alimentos e de água:
— Até hoje não foi constatada a causa. Não há um indício claro do que desencadeou (o surto). Eu, por exemplo, tenho água de poço artesiano. Mas, no período inicial do surto, tomávamos água fervida. Não custa nada ter cautela e prevenção, mas não é só a questão da água. Isso poderia ter acontecido em qualquer parte do mundo, mas foi aqui.
Desde novembro do ano passado, prefeitura e Estado não divulgam mais boletins quinzenais sobre a doença e não revelaram novo levantamento de casos.
Unidos, apenas, na falta de informações
Ainda no ano passado, o governo do Estado deu como encerrado o surto de toxoplasmose em Santa Maria. A declaração, à época, pegou de surpresa a gestão do prefeito Pozzobom que, em pouco tempo, tratou de ir no sentido contrário. A prefeitura afirmava que era prematuro e temerário dar a doença como controlada. Agora, a Secretaria Estadual da Saúde (SES) segue com o mesmo entendimento: o surto no município está "encerrado". Por e-mail, a pasta pondera que isso "não significa" que não possam surgir casos novos.
Ainda no último trimestre do ano passado, a prefeitura e o Estado passaram a elaborar conjuntamente um relatório final quanto à doença. Mas nem o teor nem a data de veiculação do documento são revelados pelas partes. Questionada, a prefeitura afirmou, por nota, que segue no aguardo da SES e que "até lá, recomenda-se (que a população) mantenha todos os cuidados já divulgados".
A prefeitura diz, ainda, que os resultados das análises de cinco laudos – de amostras de água – deram negativo para a presença do Toxoplasma gondii. O Executivo municipal, também por e-mail, afirma que "cessou a transmissão em nível epidêmico, mas que ainda há transmissão acima do número anterior ao surto, o que mantém o poder público em alerta".
Questionada sobre o relatório, a SES sinaliza que "os indícios apontam a água como a possível fonte de contaminação" ainda que o protozoário (Toxoplasma gondii) não tenha sido identificado" na água por meio de análises laboratoriais. No entendimento do Estado, é possível que o surto tenha tido como vetor uma "possível contaminação cruzada de hortaliças".
A SES afirma que aguarda apenas alguns exames pendentes do Laboratório da Universidade Estadual de Londrina (UEL) para posterior divulgação. A pasta ainda ressalta que a orientação segue sendo a limpeza das caixas d'água, consumo de água mineral ou de água fervida, principalmente no principal grupo de riscos, as gestantes.
Ministério da Saúde promete remessa de medicamentos
Já o Ministério da Saúde reiterou, praticamente, as mesmas afirmações dadas ao longo de um ano do surto. Em resposta a uma série de perguntas enviadas pela reportagem, limitou-se a encaminhar nota na qual afirma que "a investigação desse surto continua em andamento pelo Estado e município".
Na nota, a União ainda destaca que contribuiu com "orientações técnicas para notificação, diagnóstico e tratamento da doença, disponibilização de contato permanente com médicos especialistas na doença, orientações para apoiar a investigação de surto, disponibilização de laboratórios colaboradores para a realização de exames, (...) envio de profissionais de saúde para apoiar a investigação de campo e a identificação das possíveis fontes de infecção", entre outras questões.
O ministério afirma também que atuou por meio Programa Nacional de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Vigiágua) no acompanhamento e no monitoramento da qualidade da água que é tratada pela Corsan. Em agosto do ano passado, a União apontou em relatório "fragilidades no abastecimento do município" e determinou ações a serem desenvolvidas pela companhia, pelo município e pelo Estado. Entre as recomendações sugeridas pela pasta está o monitoramento dos parâmetros de qualidade da água bruta de forma individualizada durante um ano. De acordo com a Corsan, todas as amostras coletadas, até agora, tiveram "resultado negativo" para a presença do protozoário causador da toxoplasmose.
Sobre prevenção, o Ministério da Saúde afirma que "está desenvolvendo o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) para a doença e avaliando a inserção da triagem neonatal biológica (teste do pezinho) para investigar a toxoplasmose congênita".
Já sobre o tratamento da doença, o ministério informou que iniciou a distribuição dos medicamentos em 2018. A nota ressalta que "para o Rio Grande do Sul, será entregue, na próxima semana, a terceira remessa de 32.500 comprimidos de sulfadiazina e 9.120 comprimidos de pirimetamina" e que, até o final do mês, o "Estado receberá 12.272 medicamentos espiramicina." Os três são os principais remédios usados contra a toxoplasmose. O estoque, conforme a pasta, é para "suprir as necessidades do Estado nos próximos três meses".
Ainda no ano passado, a prefeitura entrou com uma ação contra a União e solicitou uma indenização de R$ 28 milhões. O governo federal contestou e, no momento, a ação está em fase de réplica.
Procuradora da República diz ser cedo para baixar a guarda
O Ministério Público Federal (MPF) acompanha o caso desde o início. Conforme a procuradora da República Bruna Pfaffenzeller, que tem se debruçado ao longo deste ano no caso, a instituição trabalha além "do atendimento momentâneo":
— Não podemos, neste momento, baixar a guarda. Precisamos seguir com as medidas preventivas para que, em eventuais novas ocorrências, não necessariamente em um período de surto, tenhamos a quem recorrer e saibamos como tratar adequadamente.
A procuradora enfatiza que a atuação do MPF vai no sentido de que Santa Maria possa servir de referência para a criação de medidas em âmbito nacional que, por consequência, venham prevenir novos episódios da doença:
— Até hoje, o Ministério Público Federal vem acompanhando e cobrando do Ministério da Saúde a elaboração de um protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para tratamento da toxoplasmose. Também vemos a importância da elaboração de uma portaria para financiamento daqueles medicamentos com fórmulas magistrais que são para pacientes pediátricos e tem alto custo além da inclusão da sorologia da toxoplasmose no teste do pezinho, hoje oferecido apenas na rede privada.