Visita após visita, o médico californiano Pei Chen esperava conseguir convencer uma paciente com diabetes tipo 2 a autorizar o aumento dos níveis de açúcar no sangue. Sim, aumentar. A mulher, que tinha 84 anos quando foi pela primeira vez à clínica geriátrica da Universidade da Califórnia, em São Francisco, convivia com a doença havia décadas e seguia um tratamento complexo envolvendo autocontrole glicêmico frequente e injeções diárias de dois tipos de insulina.
Médicos geriátricos costumam encorajar pacientes idosos com saúde mais debilitada a não exagerar nos esforços em busca de uma glicemia muito baixa (uma abordagem conhecida como “desintensificação”), com a justificativa de que o equilíbrio entre benefícios e riscos muda com a idade e a doença.
Pode-se pensar que esses pacientes ficariam felizes em tomar menos medicamentos e talvez saborear um biscoito de vez em quando. Contudo, pessoas mais velhas acometidas pela diabetes têm um longo histórico de privação alimentar para manter os níveis de hemoglobina A1c (controle que mede a média glicêmica de dois a três meses) abaixo do limite de 7%, que sempre tiveram de respeitar. Por isso, eles tendem a dar a mesma resposta que essa paciente octogenária.
— Ela disse: “Faço isso há 25 anos. Você não precisa me dizer o que fazer. Consigo lidar com isso” — lembrou Chen, o geriatra.
Os prazeres da vida ficam cada vez mais escassos, especialmente em uma casa de repouso, e a alimentação é um que permanece.
SEI LEE
Geriatra americano
A paciente não alterou a rotina de costume e manteve os níveis de glicemia e A1c muito baixos, um impasse que perdurou até os rins começarem a falhar, complicação comum da diabetes. As mudanças metabólicas da insuficiência renal somadas às altas doses de insulina reduziram os níveis de açúcar no sangue de forma tão severa, que ela começou a experimentar episódios frequentes de hipoglicemia – ou seja, baixo índice de açúcar no sangue. A hipoglicemia também aumenta os riscos de quedas e fraturas.
— Ela se sentia tonta e nauseada, suava muito — descreveu Chen.
Foi apenas nesse momento que a paciente, já com 87 anos, aceitou deixar de lado a insistência em manter um controle tão severo.
“Isso é medicina personalizada”
Aproximadamente um terço dos norte-americanos acima de 65 anos tem diabetes. Em março, a Sociedade de Endocrinologia dos EUA revelou novas diretrizes para o tratamento. As recomendações incluem níveis de referência de glicemia e A1c mais altos para idosos portadores de diabetes, particularmente aqueles que apresentem outras doenças crônicas e déficits cognitivos com dificuldades para realizar tarefas diárias.
— Isso é medicina personalizada, olhar para cada paciente individualmente e decidir o tratamento mais apropriado. Você pode ter um de 75 anos saudável que seja capaz de lidar com um controle rígido, mas é provavelmente uma minoria — disse o médico Derek LeRoith, que estava à frente do comitê que revisou as evidências e preparou as diretrizes.
Recentemente, algumas associações médicas têm apoiado valores de referência mais moderados para a glicemia de pacientes mais velhos, incluindo a American Geriatrics Society (Sociedade Americana de Geriatria), a American College of Physicians (Associação Americana de Médicos), a American Diabetes Association (Associação Americana para a Diabetes) e o sistema médico para veteranos. Ter também o suporte da Sociedade de Endocrinologia – cujos membros incluem grande parte dos endocrinologistas que atendem pacientes nos Estados Unidos – pode ajudar a divulgar a informação.
— É importante mudar o pensamento de que mais baixo é sempre melhor — enfatizou Kasia Lipska, endocrinologista da Escola de Medicina de Yale, cuja pesquisa mostrou que o tratamento excessivo continua sendo comum em diabéticos de mais idade, que, em sua maioria, contam com os médicos da assistência básica.
Para deixar claro, nenhum desses grupos aconselha ignorar os altos níveis de açúcar no sangue em idosos. A diabetes pode levar a complicações preocupantes, de ataques cardíacos e derrames a cegueira e amputações, além de estar associada ao prejuízo cognitivo.
Com o aumento da expectativa de vida, “sabemos que pessoas entre 70 e 75 anos podem viver outros 10 anos ou mais”, afirmou LeRoith, e uma glicemia reduzida poderia auxiliar no controle dos riscos de complicações. Entretanto, ele complementou, “é necessário agir cuidadosamente com esse grupo”.
Controle versus expectativa de vida
A idade e a expectativa de vida são importantes no tratamento da diabetes por causa do tempo necessário para atingir bons resultados.
— Você precisa controlar a glicemia por cinco a 10 anos antes de ver benefícios reais, como a redução do risco de amputação ou de diálise — declarou Lipska.
Por outro lado, os possíveis danos que acompanham o tratamento surgem rapidamente.
— O principal é a hipoglicemia, mas há também riscos de administrar múltiplos remédios simultaneamente, mais margens para erros e mais despesas; isso impacta imediatamente como as pessoas se sentem e vivem — ponderou Lipska.
É por isso que as diretrizes da Sociedade de Endocrinologia e de outros grupos recomendam baixos níveis de açúcar no sangue e de hemoglobina A1c para idosos em boas condições de saúde e níveis mais altos para aqueles acometidos por outras doenças e expectativa de vida limitada, já que o segundo grupo, provavelmente, não viverá o suficiente para se beneficiar do controle mais severo da glicemia, além de sofrer com a condição durante o processo.
A Sociedade de Endocrinologia sugere um A1c variando entre 7% e 7,5% para idosos mais saudáveis que não estiverem tomando medicações que podem causar hipoglicemia. O índice sobe para 7,5% a 8% por cento para aqueles com diversas doenças crônicas ou que estiverem nos primeiros estágios de demência ou outras deficiências, e para 8% a 8,5% para aqueles com saúde debilitada. O último grupo inclui pacientes no estágio terminal de doenças ou que apresentam demência de moderada a severa, assim como aqueles que vivem em casas de repouso. As diretrizes, contudo, destacam que os valores razoáveis de A1c e glicemia podem variar para cada paciente.
Alguns dos proponentes do controle glicêmico moderado, como Sei Lee, geriatra da Universidade da Califórnia, em São Francisco, ainda consideram essas marcas muito baixas. Pesquisador de tratamentos para diabetes, Lee ajudou a esboçar as recomendações da Sociedade Americana de Geriatria no documento “Choosing Wisely” (Faça a Escolha Certa), que sugeriu um A1c mais alto, de 8% a 9%, para aqueles com múltiplas doenças e baixa expectativa de vida. No geral, ele aprova as recomendações da Sociedade de Endocrinologia:
— Elas são, sem dúvida, um passo na direção certa, um progresso.
Ele acha que o documento de 40 páginas dá ênfase excessiva à pré-diabetes, fase em que a pessoa apresenta glicemia elevada, mas não o suficiente para o diagnóstico da doença. Esse tem sido um assunto polêmico.
— Receio estarmos medicando além do que seria necessário, especialmente quando se trata de alguém acima dos 80 anos, que, usualmente, tem diversas outras condições com as quais se preocupar — opinou Lee.
Entretanto, ele vê com bons olhos a sugestão de que os diabéticos mais velhos devem comer de forma saudável e evitar os açúcares simples, em vez de seguir uma dieta rígida típica da doença.
— Os prazeres da vida ficam cada vez mais escassos, especialmente em uma casa de repouso, e a alimentação é um que permanece — lembrou Lee.
Impor a idosos uma dieta restritiva apenas para abaixar a glicemia do sangue pode deixá-los muito infelizes sem melhorar significativamente sua saúde.
Administrar a diabetes dá trabalho; por isso, não surpreende que os pacientes fiquem relutantes em relaxar a vigilância após anos atingindo baixos níveis de glicemia. A paciente de Chen acabou concordando que ter uma glicemia alta era preferível a sentir-se mal por causa da hipoglicemia. Ela reduziu a dosagem de insulina e permitiu que seu A1c subisse acima de 7%. Atendendo aos pedidos da família, também começou a fazer diálise. Morreu em março, aos 90 anos.
Por Paula Span