Doze era o número de cachimbos mexicanos estocados na casa de Carlos Quadros quando ele parou de fumar. A decisão veio após uma aula de ginástica, em que os 36 colegas acusavam que o cheiro forte da sala vinha de seu suor. Afinal, era fumante assíduo também de cigarro: quatro carteiras por dia durante 32 anos. A decisão de largar o vício deixou sua esposa, hoje com 83 anos, bastante satisfeita. Quando eles se conheceram, Carlos já fumava. Ela tinha apenas 14 anos; ele, 18. Foram dois anos de namoro, dois de noivado e então o casamento, em 27 de fevereiro de 1954. E lá se vão 64 anos e nove meses, calcula ele com rapidez.
Carlos tem 87 anos e navega pelo universo dos números e das memórias com facilidade. Apesar da avançada idade e de hábitos de vida não tão saudáveis, tem a velocidade de raciocínio e a disposição mental de alguém pelo menos 30 anos mais novo. Esses fatores o levaram a integrar um seleto grupo que começou a ser estudado nos últimos anos em diversos países e, aqui no Brasil, por três instituições de pesquisa: a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Os “superidosos”, como são chamados, correspondem a uma parcela da população com idade igual ou superior a 75 anos e com memória de indivíduos da meia-idade (em torno de 50 e 60 anos).
Hoje, sabe-se que a capacidade de reter novas memórias é alterada com o processo de envelhecimento, principalmente porque o cérebro acumula as consequências de tudo que fizemos durante a vida. É natural que todos os órgãos percam um pouco da sua capacidade com o passar dos anos, e com a cabeça não é exceção – ao menos, para quem não é superidoso.
– Também são chamados de “idosos de alta performance”. Eles se destacam pela manutenção do desempenho em testes de memória ou por apresentar desempenho superior ao considerado normal para a idade – explica a neurologista Karoline Carmona, que integra a equipe na UFMG.
Os estudos na área têm ajudado a desvendar alguns dos mistérios do cérebro, mas têm, ainda, um objetivo muito maior: desenvolver novos tratamentos para a doença neurológica mais temida pelas pessoas da terceira idade, o Alzheimer. Com o envelhecimento da população brasileira – segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), até 2060, a população com 80 anos ou mais no Brasil deve somar 19 milhões de pessoas –, estratégias de prevenção e tratamentos mais eficazes estão se tornando prioridade.
– Em vez de estudar a patologia, decidimos estudar indivíduos saudáveis para entender o que acontece com seus cérebros e, então, ajudar quem tem diversos tipos de demência. Essa é a grande questão que tentamos descobrir com pesquisas em neurodegeneração: como melhorar a saúde do cérebro e da mente – explica o médico Wyllians Vendramini Borelli, do Instituto do Cérebro da PUCRS, instituição pioneira no estudo de superidosos no Brasil, em 2015.
Encontrar esses indivíduos acima dos 75 anos e “de alta performance” não se mostrou tarefa fácil. Em Porto Alegre, por exemplo, a equipe encontrou apenas 21 superidosos, após entrar em contato com aproximadamente 320 indivíduos.
– Não temos um estudo epidemiológico para confirmar se os superidosos são raros, mas nossos dados demonstram que não é comum a presença deles. Portanto, podemos sugerir que essas pessoas são exceção na sociedade – comenta Borelli.
Exercitar também o cérebro
Para identificar um superidoso, a principal ferramenta utilizada pelas equipes de pesquisa é o RAVLT (teste de aprendizagem auditivo-verbal de Rey, na sigla em inglês), que consiste em uma lista de 15 palavras que é lida em voz alta para o participante por cinco vezes seguidas. Logo após, é apresentada outra lista de palavras, a chamada lista distratora, com mais 15 palavras. O idoso deve, então, tentar repetir as primeiras 15 e, 25 minutos depois, dizer novamente as palavras da primeira lista. Para classificá-lo como “de alta performance”, ele deve se lembrar de ao menos nove palavras nessa última fase (medida similar esperada para indivíduos até 30 anos mais jovens).
– Me disseram que eu gabaritei quase todos exames, e já repeti três vezes esses testes – orgulha-se a superidosa Vera Petersen, 84 anos.
Aposentada há 28 anos, Vera não parece se surpreender com o resultado. Afinal, se tem uma coisa que ela mantém na ativa é a cabeça. Desde que se afastou da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde foi professora e diretora da Faculdade de Enfermagem por quase quatro décadas, não parou de exercitar o cérebro. Já realizou os mais diversos cursos, como de física do cotidiano, dança, teatro, jardinagem, urbanismo, entre outros. Recentemente, passou a integrar o Grupo de Aposentados da UFRGS, que se encontra semanalmente para debater literatura, jogar xadrez e ir ao cinema.
– Amei minha profissão e a convivência com os alunos, com quem aprendi muito. Além disso, aprendo diariamente com os livros. Desde os 10 anos, me apaixonei pela literatura, e hoje leio uma média de seis livros por mês – conta Vera, que, separada há décadas, vive sozinha e não abre mão de cozinhar e limpar o apartamento onde mora, além de viajar regularmente a outros Estados para visitar primos, filhos, netos e bisnetos.
Exercitar o cérebro também é uma constante na vida da aposentada Zuleika Amaral de Souza, 88 anos, outra selecionada para o estudo da PUCRS.
– Minha filha também fez o teste por curiosidade, e a psicóloga lhe disse que havia ficado admirada com a rapidez com que eu respondia a todos os questionamentos – recorda Zuleika, que trabalhou por 17 anos no Sistema Nacional de Emprego (Sine) do bairro Restinga, na Capital.
Com oito filhos, 16 netos e três bisnetos, ela atribui o bom funcionamento do cérebro às atividades que coleciona dentro e fora de casa, onde mora sozinha desde que ficou viúva, há 22 anos. Escrever poesias, desenvolver projetos manuais e pintar quadros são apenas algumas delas, que se somam ao trabalho voluntário no Lar Santo Antônio dos Excepcionais, que realiza há mais de duas décadas, e na oficina Santa Rita de Cássia, há nove. Até em seus aniversários, ela vê oportunidades para cultivar a solidariedade. Quando completou 80 anos, não pediu presentes para si, mas comida para os necessitados.
– Agora que está chegando novamente meu aniversário, quero ganhar comida e toalha de banho para doar às pessoas que precisam de ajuda – conta.
Usuária de redes sociais como Facebook, Zuleika tem como outro hobby fazer palavras cruzadas. Graças a sua agilidade mental, completou um livro de 288 páginas com cruzadinhas em pouco tempo. Também não descuida do corpo, sendo adepta de uma alimentação saudável e de exercícios físicos, como o pilates.
Ainda assim, Zuleika não se considera uma superidosa:
– Minhas colegas de voluntariado ficam espantadas com a facilidade com que eu memorizo as coisas. Isso porque, além de escrever poesias, eu declamo, e, para isso, preciso decorar. Só que, ao contrário delas, não me surpreendo, acho isso normal.
O que já foi descoberto
O principal desafio dos especialistas é entender o que faz os cérebros dos superidosos serem mais resistentes aos efeitos do avanço da idade e quais são os fatores importantes para manter uma boa saúde mental na terceira idade.
Até o momento, eles já encontraram algumas pistas. As pesquisas mais recentes na área têm mostrado que esse grupo apresenta maior volume cerebral, especialmente na região chamada do cíngulo anterior, uma estrutura que conecta diferentes regiões do cérebro e que participa ativamente na regulação de funções cognitivas, inclusive da memória. Além disso, eles têm uma maior quantidade de um tipo específico de neurônio, chamado de Von Economo, que está relacionado a características de sociabilidade (comportamento social complexo) do ser humano e de alguns mamíferos como grandes primatas, golfinhos, elefantes e baleias.
Para envelhecer bem e manter essas estruturas ativas e saudáveis, já se sabe que os hábitos e o ambiente são essenciais. Alimentação, exercício físico e estímulo cognitivo têm se mostrado como fatores muito importantes para a saúde do cérebro.
– Alguns estudos sugerem que uma maior escolaridade pode estar associada à diminuição do risco de demência, principalmente devido ao aumento do que chamamos de “reserva cognitiva”, que seria uma maior tolerância aos efeitos deletérios do envelhecimento – explica a neurologista Karoline Carmona, da UFMG.
O bom humor também entra nessa lista. Estudos mostraram que os idosos de alta performance apresentam maior nível de “relações positivas com outros” em uma escala de bem-estar psicológico, o que significa manter relacionamentos acolhedores, seguros, íntimos e satisfatórios com outras pessoas. E apresentaram menor frequência de sintomas depressivos do que o restante da amostra de idosos saudáveis.
Ainda que Carlos, Vera e Zuleika compartilhem boas doses de humor, como explicar a grande desenvoltura mental dos três se elas se destacam pela agitação e inquietação mental, enquanto ele leva uma vida mais pacata e acumula uma história de hábitos não tão saudáveis? Carlos, que por décadas trabalhou como eletrotécnico da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), hoje é um aposentado que não gosta muito de sair de casa. Restringe o hábito da leitura ao jornal diário, distrai-se vendo o noticiário na TV e, de vez em quando, joga uma partida de Paciência no computador.
A agitação fica por conta apenas da ginástica, que segue praticando três vezes por semana.
– Encontramos em nosso estudo indivíduos de baixa escolaridade com alto desempenho de memória, sugerindo uma participação de determinantes biológicos, ou seja, de fatores genéticos, nesses casos – explica Carmona.
Uma das pesquisas mais recentes sobre a influência da genética na saúde do cérebro aponta para um gene específico, que estaria associado aos indivíduos superidosos.
– Este gene é muito importante para a formação de novas memórias. Ele pode ser usado, por exemplo, para o tratamento de doenças como o Alzheimer – detalha o médico Wyllians Vendramini Borelli, da PUCRS.