O homem de 72 anos que abre o portão da casa na zona sul da Capital veste bermuda e camiseta masculinas. O cabelo, uma mescla de louro, marrom e branco, está suspenso em um rabo de cavalo, e um batom cor de rosa tinge os lábios num preenchimento oscilante, que marca também os dentes.
Na cozinha, Carlos Alberto Porciúncula, 72 anos, enrola um palheiro enquanto conta sua história como Carlinhos, Renato Freitas e Charlote Beatriz. O primeiro nome é a alcunha mais comum, o segundo batiza o cantor que construiu carreira na noite como intérprete de MPB e o terceiro se refere a sua identidade feminina, uma prática comum entre gays – os mais velhos são ainda chamados de "Irene". Apesar do guarda-roupa misto, com vestidos longos de festa, camisas, saias, blazers, calcinhas, sutiãs e cuecas, além de variados itens de maquiagem, Carlinhos, que gosta de assumir o papel de mulher em seus relacionamentos, não se define como travesti ou transexual (a condição em que há um desacordo entre a genitália de nascença e o gênero com o qual o indivíduo se identifica).
— Não, disso aí eu não gosto, nunca fui. Ou é oito, ou 80. Ou é gay, bicha, ou é homem, macho.
Como as de tantos outros, a infância e a adolescência de Carlinhos foram conturbadas. A mãe, que notava algo "diferente" no guri, insistia em lhe arrumar namoradas. O jovem se debatia: não sentia atração pelas meninas, e sim pelos meninos. Quando tinha encontros sexuais, sofria com a culpa. Chorava, rezava, pedia perdão.
— Deus, por que é que eu sou assim? — rogava.
Carlinhos encontrou serenidade no espiritismo. Concluiu que encarnou no corpo errado, de homem, após ter sido mulher em vidas passadas ou talvez um homem casado que aprontou para a esposa ou criticou muito a homossexualidade, devendo agora pagar por seus deslizes.
— Aí fui me entendendo e me aceitando — conta.
Em tese, o jovem trabalhava como operador de máquinas na empresa do pai, que sonhava transformar o filho em um empresário de sucesso. Na prática, Carlinhos estava sempre faltando ao serviço, gostava mesmo era de varar madrugadas cantando – cita mais de uma vez, encantado, que fez parceria até com Elis Regina. Recebeu proposta para gravar em São Paulo, mas jogou a oportunidade fora "fervendo no Carnaval do Rio". Magro, barriga chapada, usava camisa floreada com um nó na cintura, calça pantalona e salto alto. A mãe repudiava os esmaltes vermelhos e azuis:
— Tenho horror dessa unha! É o próprio diabo!
O aposentado contabiliza três casamentos, de oito anos cada um. Orgulha-se das relações que manteve, sempre transparentes – apesar dos problemas de dependência química de dois dos parceiros –, e não poupa críticas a quem simula uma vida hétero e mantém encontros homossexuais em surdina.
— Acho horroroso homem casado mais gay do que eu. Me dá arrepio, nojo. Metade de todos aí na rua corta dos dois lados. Existem as exceções, mas tem que procurar. Todo aquele que chama outros de bicha é uma bicha enrustida.
Acho horroroso homem casado mais gay do que eu. Me dá arrepio, nojo. Metade de todos aí na rua corta dos dois lados. Existem as exceções, mas tem que procurar. Todo aquele que chama outros de bicha é uma bicha enrustida.
CARLOS ALBERTO PORCIÚNCULA
Aposentado
Atualmente, Carlinhos mantém relações eventuais, sem compromisso, e um que outro namorico. Conhece homens andando pela rua, na parada de ônibus, "por aí". Ele garante que, só pelo olhar, sabe se o interesse é genuíno ou se é caso de "comércio", quando jovens o abordam oferecendo sexo em troca de dinheiro.
— Daí eu dispenso. Nunca transei por troco nenhum — frisa.
Carlinhos aprecia morenos com traços marcadamente másculos. Sempre preferiu parceiros mais novos, gosto que mantém até hoje. Anda com rapazes na faixa dos 20 e 30 anos que, muitas vezes, são casados com mulheres e têm filhos.
— Velho não quero. De velho basta eu! É difícil um de 60 me agradar – detalha, logo fazendo uma concessão: — Depende se o homem está inteiro, bem conservado, malhado... Se está um trapo, quem vai querer (risos)?
Ele confessa que gostaria de um amor mais duradouro, uma companhia que o levasse para passear. Paixão de dar frio na barriga, não quer mais, pois acredita que velho apaixonado é "fumeta", "fogo", "desespero", "perder a cabeça". Mas não se queixa de solidão. Sente-se bem, cercado de amigos e familiares e dos cachorros que fazem folia no pátio. Lamenta apenas a agenda vazia, gostaria de ser mais solicitado para shows.
No discurso, Carlinhos se refere a si mesmo, na maior parte das vezes, no masculino, mas recorre ao feminino em algumas situações. Hoje em dia, veste mais "roupinhas meia-boca" do que as superproduções de outrora. Do batom, "depois de velha", não abre mão. Quando é alvo de olhares desaprovadores por onde passa, repele a estranheza com um xingamento, mas o povo das cercanias já se acostumou com seu estilo. A mãe, nonagenária, ainda lúcida apesar das complicações decorrentes de um acidente vascular cerebral, segue tratando-o como uma criança. Recomenda que tome cuidado com os carros ao atravessar a rua e, toda noite, não dorme sem antes telefonar:
– Meu filho querido, a mãe te ama. Você é a minha vida.
Mesmo se tem algum problema, Carlinhos não conta, evitando transferir preocupações para a idosa. Quanto a sua própria velhice, pretende ainda viver muito, até os cem, sempre aprendendo. Não lastima o declínio físico, que tirou o viço das pernas tão elogiadas quando era moço, porque acredita que ainda tem atrativos. Há dias em que se acha melhor, noutros, pior, a depender do que veste. Recentemente, submeteu-se a uma bateria de 24 exames que comprovaram sua boa saúde.
– Que eu fique como estou, legal de cabeça, que tenha uma mente tranquila. Essa história de velhice é bobagem. Por dentro, me sinto com 20, 30 anos. Estou mais experiente, só isso. Certas coisas que eu fazia não quero fazer mais porque acho que não é bom para mim. Mas dizer que estou um trapo e atirado... Você acha que estou?