A conversa iniciada em um encontro casual no centro de Santa Maria, na véspera de um feriado de 1º de maio, foi fundamental para estimular o que começaria a tomar forma nos dias subsequentes. Carlos Alberto da Cunha Flores, o Kalu, estudante de Filosofia, comentou que viajaria para um sítio em Santana da Boa Vista, a 160 quilômetros de distância, na manhã seguinte.
— Que ótimo! Eu adoro sítio — comentou João Jerônimo de Melo Sodré, aluno do curso de Zootecnia.
— Não quer ir junto? — arriscou Kalu.
— Vamos!
Até então, ambos se conheciam superficialmente, cruzando-se vez que outra em eventos e por conta de amigos em comum. Latente, a atração explodiu logo na primeira noite gelada no endereço rural, a partir da deixa do anfitrião, que sugeriu:
— Durmam juntos os dois. Vou juntar as camas, está muito frio.
Ali, no outono de 1978, começava o relacionamento que soma 40 anos.
— A gente não perdeu tempo — recorda João.
— Quem tomou a iniciativa? — questiona a repórter.
— Acho que os dois — responde Kalu, rindo, acrescentando que, no final daquele mesmo ano, os dois já estavam morando juntos.
João reflete:
— Acho que a sexualidade masculina é mais espontânea. A história da mulher é mais cuidadosa, mais pensada. "Será que eu dou, será que eu não dou? O que ele vai pensar? Ele não pode pensar que sou china, fácil, leviana."
— Eu tinha muitos namorados, não parei — informa Kalu.
— Estava muito rodado! — diverte-se o companheiro.
O casal hoje vive em uma residência na centenária Vila Belga, em Santa Maria. Há estantes repletas de origamis feitos pelo artesão Kalu, 66 anos, diretor-geral do Brique da Vila Belga. Entre os mais simples e os mais elaborados, veem-se complexas produções montadas com encaixes de papel que se mexem com o movimento das mãos, revelando novas formas e cores. O multicolorido combina com o alto-astral dos moradores. Impossível não rir com o bom humor de Kalu e do doceiro João, 67 anos, o conhecido "João das Cocadas" da Rua Alberto Pasqualini. Em uma noite quente do início de abril, eles receberam a reportagem de ZH para recordar a longa trajetória dessa relação entre dois homens.
— É incrível, passamos por coisas bem importantes, mas determinados detalhes esquecemos — constata João, esforçando-se para resgatar os diálogos de um episódio anterior ao primeiro beijo.
— Ah, faz parte, né? Quarenta anos! — observa Kalu.
Vovô Kalu já começou a transmitir a técnica dos origamis para a neta, Maria Eduarda, oito anos, que a cada visita espalha bilhetinhos de agradecimento. A menina tenta entender a configuração familiar diferente. Contou para a professora, certa vez, que tinha quatro avôs – a educadora ficou confusa e pediu esclarecimentos. Em outro dia, a pequena questionou o casal diretamente:
— Vocês são o quê?
A menina é filha de Alexandre, 33 anos. O casal também é pai de Rafael, 31. Ambos foram adotados no Rio de Janeiro, terra natal de João. Para Kalu, a consciência da homossexualidade se deu cedo, e a vontade de se casar e se tornar pai também ficou clara logo, causando sofrimento – ele pensava que não poderia formar uma família como aquela em que havia nascido.
— Com meus pais, nunca tive problemas. Isso (homossexualidade) não era falado, não conversávamos, mas eles entendiam, viam, recebiam meus amigos homossexuais. Eu nunca disse "sou gay". Nunca conversamos sobre isso, nem mais tarde — lembra o artesão. — Minha mãe, uma vez, disse para uma tia religiosa: "O Kalu mora com o João. Eles resolveram cuidar um do outro, não quiseram casar, nenhum quis ter mulher". Ela apresentava o João para as pessoas da igreja como meu "amigo íntimo". E eu deixava, respeitava.
Acho louco você viver ao lado dos seus pais e não compartilhar com eles coisas gostosíssimas, como você se apaixonar por uma pessoa. Minha mãe era bipolar, extremamente amável como mãe, fantástica. Muitas vezes tive vontade de falar. Ela percebia. Quando ela conheceu o Kalu, tive vontade de dizer: "Eu vou viver minha vida inteira com ele". Pensei: "Vou dizer isso e ela pode ter um chilique". Mas, por amá-la, não quis dar esse desgosto, e, para meu pai, muito menos.
JOÃO JERÔNIMO DE MELO SODRÉ
Doceiro
Kalu chegou a ter namoricos e até relações sexuais com gurias. No caso de João, os primeiros encantos foram despertados por garotas: Eliane, as pernas finas à mostra sob a sainha ginasial, que pegava o ônibus da linha 227. A loira Sueli, cabelo curto, que botava o coração aos pulos. Depois Neia, da Rua Gaspar, número 54. Até que, por volta dos 14 anos, João começou a achar muito bonito um menino da vizinhança. "Não pode ser", pensou o garoto, sentindo um incômodo.
— Acho louco você viver ao lado dos seus pais e não compartilhar com eles coisas gostosíssimas, como você se apaixonar por uma pessoa. Minha mãe era bipolar, extremamente amável como mãe, fantástica. Muitas vezes tive vontade de falar. Ela percebia. Quando ela conheceu o Kalu, tive vontade de dizer: "Eu vou viver minha vida inteira com ele". Pensei: "Vou dizer isso e ela pode ter um chilique". Mas, por amá-la, não quis dar esse desgosto, e, para meu pai, muito menos. Mais tarde, ele até ficou sabendo, mas nunca disse: "Meu filho, vai fundo" — relembra João, que, na época do pré-vestibular, saiu com uma jovem que "inventou uma história de noivado".
Os dois nunca esconderam a relação. Sempre falaram, abertamente, que moravam juntos. João é o mais carinhoso, mas eles não são dados a grandes manifestações de afeto em público. Costumam se cumprimentar com um abraço e um beijo no rosto. Por vezes, os clientes do carrinho de cocadas querem saber se os dois são pai e filho ou tio e sobrinho. João, nem aí, assente, Kalu fica brabo e corrige. Que achem o que quiserem, pensa João. Eles costumam se referir um ao outro como "companheiro".
— Marido é uma coisa pesada, né? — brinca João.
Nós nos complementamos bem. Cedemos muito, aceitamos as diferenças, temos liberdade. O João foi importantíssimo na minha vida. Acompanhamos um ao outro e agora estamos envelhecendo juntos. Nossa relação foi vitoriosa sempre. Sinto muita gratidão por tê-lo encontrado
KALU DA CUNHA FLORES
Artesão
João admira o espírito solidário e agregador de Kalu, e Kalu gosta da simplicidade e da franqueza de João. Perto dos 70, o artesão acha que já não dispõe mais do pique de outros tempos – tinha uma rotina movimentada, não perdia um show nem uma peça de teatro –, o que sempre o diferenciou de João, mais caseiro.
— Eu o deixava e saía sozinho. Mas você vai ficando mais seletivo. Hoje já escolho coisas que têm mais a ver conosco, para preservar a companhia — explica Kalu.
Kalu também está mais preocupado em cuidar do parceiro, papel que sempre foi mais marcante em João. Antes de dormir, João ganha uma sessão de coçadas nas costas e abraços.
— Levo comprimido na cama, água, banana — enumera Kalu.
— É, mas não faz nada. Se mando lavar uma roupa, ele bota a caixa de sabão em pó todinha para lavar um lenço! — contrapõe o doceiro.
— Eu faço as coisas da rua, banco, contabilidade, agenda. O João não sabe nem quanto ele tem na carteira. Não suporto essa coisa de casa mesmo — defende-se Kalu.
— Sabe aquela dona de casa resignada? Sou eu! — define João, rindo.
Quando perguntados sobre a fórmula para uma união tão duradoura e bem-sucedida, João graceja ("Só Jesus na causa!"). Kalu tenta uma explicação, relembrando os anos de "porra louca", quando foi hippie, viajava de carona e passava as noites em casas abandonadas na companhia de sem-teto:
— Nós nos complementamos bem. Cedemos muito, aceitamos as diferenças, temos liberdade. O João foi importantíssimo na minha vida. Acompanhamos um ao outro e agora estamos envelhecendo juntos. Nossa relação foi vitoriosa sempre. Sinto muita gratidão por tê-lo encontrado.