Sucessivos anos de déficit nas contas da saúde pública do Estado estão levando ao colapso um dos serviços mais sensíveis ao cidadão: os hospitais que atendem pelo Sistema Único de Saúde (SUS). No Rio Grande do Sul, segundo a Federação das Santas Casas e Hospitais Beneficentes, Religiosos e Filantrópicos, são pelo menos 16 instituições com restrição de atendimento.
Com isso, cirurgias e internações eletivas não estão sendo feitas, há restrição de exames, greve de funcionários por atrasos de salários e atendimentos apenas quando há risco de morte. Estes 16 hospitais são referência de atendimento para 259 municípios – sem levar em conta os 156 municípios que têm como referência o Hospital de Pronto Socorro de Canoas, que está com atendimento restrito há duas semanas. Ou seja, mais da metade do Estado já sente o reflexo da crise.
A cada dia que passa, a situação se agrava e as cifras se multiplicam. Os hospitais têm a receber do Estado valores de agosto e setembro que, juntos, somam R$ 140 milhões. Nesta sexta-feira (30), vence mais uma parcela de R$ 70 milhões referente ao mês de outubro, fazendo a dívida saltar para R$ 210 milhões.
Superintendente da Federação das Santas Casas, Jairo Tessati é enfático ao afirmar que esse é o pior momento enfrentado pelos hospitais filantrópicos nas últimas décadas:
— A todo momento, uma nova instituição começa a restringir atendimento. É o caos. Se nada for feito, será uma quebradeira a cada mês. Não tem como exigir que alguém preste serviço, se ele não tem condições de comprar os insumos. A população ficará cada vez mais desassistida.
Aberto há 97 anos, o Hospital São Vicente de Paulo, de Cruz Alta, no noroeste do Estado, vive um dos capítulos mais dramáticos da sua história recente. Além de amargar um déficit mensal de R$ 900 mil, o hospital está sem receber R$ 1,8 milhão do Estado referente a repasses de incentivos dos meses de setembro e outubro. A situação forçou a direção a suspender todas as cirurgias eletivas e internações clínicas. As portas estão abertas apenas para casos de urgência e emergência. As 20 cirurgias diárias despencaram para seis, no máximo. Já as internações, que diariamente variavam entre 20 e 25, hoje estão em nove e 10.
Com 175 leitos, dos quais 82% são destinados aos SUS, a instituição atende uma população total de 888 mil pessoas de toda a Macro Região Missioneira e parte da região central do Estado. É referência em especialidades de alta complexidade como oncologia, traumatologia, neurologia e nefrologia. Para 13 municípios da 9ª Coordenaria Regional de Saúde (CRS) – que compreende a região de Cruz Alta –, é referência em todas as especialidades, para os 20 municípios da 17ª CRS, na região de Ijuí, é referência em traumato, e para 32 cidades da 4ª CRS, que abrange a região de Santa Maria, é referência em neurologia.
— Muitas cidades do nosso entorno não têm hospital nenhum. Cruz Alta mesmo só tem este que atende SUS. O impacto dessa situação é regional — assinala o assessor jurídico do hospital Marco Aurélio Dreher, que avalia a possibilidade de manter o hospital aberto por, no máximo, mais 30 dias, caso a falta de repasses continue.
Com parte dos salários de setembro atrasados e com nenhum valor depositado do mês de outubro, e sequer perspectivas de pagamento dos vencimentos de novembro e da primeira parcela do 13º salário, os funcionários do hospital estão em greve desde 2 de novembro. Um acampamento foi montado em frente ao Pronto-Atendimento do Hospital.
A direção do São Vicente de Paulo afirma que 50% dos 500 funcionários aderiram ao movimento. O sindicato da categoria diz que este índice chega a 80% em turnos de revezamento, para que ao menos 30% do serviço do hospital seja mantido.
— Apenas a administração, a portaria e a lavanderia não aderiram ao movimento. Mesmo assim, não temos perspectivas de nada, estamos desesperados. Tem colegas nossas passando fome — afirma a representante do Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos de Serviços de Saúde (Sinesca) de Cruz Alta, Juliana Sales Heger.
O diretor-administrativo Leandro Martins reforça que as cirurgias não estão ocorrendo devido à falta de materiais, insumos e medicamentos e não porque os funcionários estejam se negando a executá-las. O hospital tem R$ 1,7 milhão em dívidas com fornecedores.
— Não é má vontade de fazer os procedimentos. O problema é que temos falta de materiais como gaze, antibióticos mais caros, luvas cirúrgicas e órteses e próteses para cirurgias de traumato — exemplifica.
Sem previsões de quando chegarão recursos do Estado, a direção do hospital corre por fora na tentativa de garantir recursos extraordinários, via emenda parlamentar. Nesta semana, conversou com deputados estaduais na Capital e, na próxima, deve ir a Brasília, em novas tentativas de conseguir verbas.
Para a Federação das Santas Casas, se não forem imediatamente quitados os R$ 140 milhões devidos aos hospitais do RS, o problema sequer será amenizado. Os R$ 20 milhões repassados pelo Estado aos hospitais no final da semana passada sequer tiveram efeito na crise. Tessati explica que este recurso diz respeito à produção SUS do mês de cada hospital e, por isso, não diz respeito aos valores devidos referentes aos programas e incentivos específicos. Ou seja, não interfere na dívida.
Ala fechada, remédios no fim e silêncio incomum
Na farmácia do Hospital São Vicente de Paulo, o cenário é muito diferente do habitual. Os equipos – material usado para aplicar medicação de quimioterapia em tratamento de câncer – estão praticamente no fim. O estoque de Omeprazol, na terça-feira (27) pela manhã, resumia-se a duas caixas com 20 comprimidos cada, o suficiente para apenas dois dias.
A qualidade das refeições oferecidas aos pacientes só não se inviabilizou porque 95% dos alimentos consumidos dentro do hospital são doados pela comunidade, por agricultores e empresários.
Um dos quatro postos de atendimentos, que funcionam como alas, foi fechado e está completamente vazio. Restaram as macas, algumas, inclusive, sem colchões. Nos corredores do hospital, além do silêncio mais incomum que o normal para uma instituição de saúde, o medo em relação ao que virá prevalece.
— Aqui o comentário é que vai fechar, tenho muito medo disso porque é nossa única opção de SUS em Cruz Alta — afirma a dona de casa Irene Ribeiro, 75 anos, moradora da cidade, que acompanha o marido em internação após uma cirurgia na vesícula.
Pela primeira vez em 10 anos, a dona de casa Terezinha do Amaral Bullé, 62 anos, está perdendo o sono por causa do tratamento da filha Luciana, 27 anos. A jovem faz hemodiálise no Hospital São Vicente de Paulo três vezes por semana. A mãe a acompanha de Salto do Jacuí, a 74km de Cruz Alta, em todas as sessões.
— Estou com muito medo de que o problema do hospital chegue nas hemodiálises. Já perdi o sono por causa disso. Na van que nos traz até aqui, todos têm a mesma preocupação — desabafou a mãe, enquanto aguardava a filha concluir o procedimento de três horas e meia.
O Hospital de Caridade de Canguçu, referência em maternidade para outros dois municípios, vive situação parecida ao de Cruz Alta. Também está com funcionários em greve desde segunda-feira (26) devido a atraso de salários e ao não depósito do FGTS. Apenas a maternidade e o serviço de urgência é mantido.
A situação também é grave no Hospital de Caridade de Ijuí, que é referência para 120 municípios, com 1,5 milhão de pessoas. Como único centro oncológico de alta complexidade do interior do Estado, executa, em média, 150 sessões de quimioterapia para tratamento do câncer por dia. Para este hospital, o Estado deve R$ 7 milhões. A crise levou ao não pagamento de fornecedores e os medicamentos usados na quimioterapia estão com os dias contados. Caso o governo gaúcho não aporte novos recursos, em dezembro as sessões terão que ser suspensas.