A transexualidade não é mais considerada um distúrbio mental pela Organização Mundial da Saúde (OMS). De acordo com a nova Classificação Internacional de Doenças (CID, abreviação de Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da tradução do inglês), que mapeia e padroniza no mundo inteiro toda e qualquer enfermidade que o ser humano possa apresentar do nascimento à morte, a condição passa a ser listada na categoria de saúde sexual.
A incongruência de gênero (nomenclatura da CID) ou disforia de gênero (expressão da Associação Americana de Psiquiatria, que elabora o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM) pressupõe um desacordo entre o gênero de nascimento e aquele com o qual a pessoa se identifica. Um menino pode não aceitar seu sexo de nascença desde a infância, por exemplo, mostrando-se desconfortável com seu corpo e com os papéis que lhe são atribuídos, porque se sente uma menina. No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem centros de referência – entre eles, o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) – autorizados a prestar atendimento multidisciplinar a essas pessoas, além de realizar a cirurgia de redesignação sexual (os genitais femininos são transformados em genitais masculinos, e vice-versa).
De acordo com a OMS, as evidências agora deixam claro que a incongruência de gênero não se trata de um problema mental, "e classificá-la como tal pode provocar um enorme estigma para os transgêneros". Ao mesmo tempo, salienta que ainda existe uma significativa necessidade dessa parcela da população por cuidados de saúde, o que justifica a permanência da codificação da transexualidade no novo manual. Até a CID-9, a homossexualidade era vista como doença, sendo excluída apenas na edição seguinte, quando se chegou ao entendimento de que dispensava tratamento.
Maria Inês Lobato, coordenadora do Programa de Identidade de Gênero do HCPA, liderou no Brasil as discussões para a renovação da CID-11 nessa área. A psiquiatra afirma que a mudança de classificação é benéfica, apesar de se tratar de um critério técnico e de conhecimento restrito. A incongruência/disforia de gênero, explica ela, continua sendo uma condição médica, dentro de um código, e precisa de atendimento. O maior preconceito de quem não aceita a transexualidade, argumenta Maria Inês, é pelo fato de estar ligada à sexualidade – "Como um homem pode ser mulher?", questionam-se –, e não por figurar nesta ou naquela seção da CID. A coordenadora acredita que a mudança poderá ser realmente verificada em países menos desenvolvidos que restringem direitos civis de pacientes psiquiátricos. Ela tenta minimizar o "peso" de um diagnóstico desses na atualidade:
– As pessoas querem se livrar da pecha de ter uma doença psiquiátrica. Existe preconceito. Mas hoje em dia tanta gente tem depressão, tanta gente tem ansiedade... Muitas pessoas têm pelo menos um transtorno psiquiátrico na vida.
A especialista saúda o fato de o tema ter voltado a ser amplamente discutido com a divulgação da notícia pela OMS na última segunda-feira (18).
– Acho que o estigma e o preconceito vão diminuir mesmo com informação, com conhecimento – conclui.
Esta é a 11ª edição da CID, que será apresentada na Assembleia Mundial da Saúde, em 2019, para apreciação de seus Estados-membros. O compêndio com mais de 55 mil doenças codificadas deverá passar a valer em janeiro de 2022. Segundo a entidade, o texto está adaptado ao século 21 e reflete avanços fundamentais na ciência e na medicina. A 10ª versão da CID, lançada em 1990, revisada periodicamente e hoje em vigor, tem um rol de 14 mil doenças.