A novela A Força do Querer, da Rede Globo, vem chamando a atenção para uma questão ainda pouco debatida: a transexualidade. Na seção "Duas Visões", reunimos os depoimentos de Marina Reidel (leia abaixo), coordenadora-geral de Promoção de Direitos LGBT do Ministério dos Direitos Humanos, que assumiu publicamente sua condição de transexual aos 30 anos, e o da psiquiatra, coordenadora do Programa de Identidade de Gênero do HCPA, Maria Inês R. Lobato. O objetivo desses dois relatos é contribuir para uma visão mais humana e menos sectária sobre o tema.
No velho espelho do roupeiro de minha vó, entre sombras e manchas, fiquei procurando por toda vida o meu verdadeiro EU. O EU que não encontrava, a não ser pela certeza de minha mãe, que dizia a todos que eu era um menino, mas na verdade eu tinha dúvidas sobre o que eu era.
Na minha infância pobre e periférica, brincava de casinha, de boneca e ensaiava um jogo de futebol com os meninos da rua, mas não conseguia, não sabia e tinha medo. Na escola, aprendi muito sobre violência e agressão, pois eram praticadas todos os dias e eu não sabia me defender. Num mundo de sofrimento, aprendi que talvez a vida pudesse ensinar, mesmo pequena, como a sociedade via e julgava aqueles que saem da heteronormatividade. Também aprendi muito como ser uma aluna diferente, que sofria calada, e sobre o silêncio da escola, que ditava as regras e o preço que se pagava por desobedecer a ela em especial, quando são as regras não escritas, como é o caso da maioria das regras de gênero e sexualidade. Em nenhum lugar se diz que aluno não deve ser delicado, em nenhum lugar está posto que aluna não pode jogar futebol, em nenhum lugar se diz que aluno não pode gostar de roupas, adereços, bijuterias. Ao mesmo tempo, embora não estejam escritas, essas leis são muito duras e o meu aprendizado como aluna fez conhecer bem tal dureza, e é claro que influenciou o ser professora, já que uma boa parte do que se aprende como ser professora aprende-se olhando a escola, a sala de aula e as demais professoras, quando somo alunos.
Naquela época, voltava para casa com todas as humilhações e ofensas na cabeça. As torturas psicológicas, as agressões escolares, o medo e o silêncio da família, meu espelho também silenciava. Ele não respondia os porquês, as dúvidas e apenas via minhas lágrimas. Chorei muito na frente dele. Chorei aproximadamente 30 anos e cada gota que caía de meu rosto era o reflexo de tudo o que eu sentia e o que vivia.
No entanto, nas brincadeiras, eu vestia a personagem feminina... a professora, a dona de casa, a atriz. Fui Alice, Dorothy, Mônica, Barbie e tantas outras meninas que as fábulas contavam. Lembro também que um dia alguém disse que se eu atravessasse um arco-íris depois da chuva viraria uma menina. Juro que por toda a minha infância fiquei procurando o arco-íris para atravessá-lo. Cresci com esse desejo, porém ficou adormecido por muito tempo. Era profissional da educação e, ao lecionar para crianças, talvez não pudesse assumir minha condição e ser condenada por expor minha vivência. Mais uma vez, tive medo de sair do suposto armário e mantive o silêncio. Quando criei coragem e assumi publicamente minha identidade de gênero, aos 30 anos, meu passado ficou na memória e nas fotografias. Rompi o casulo, arregacei as mangas e fui à luta com um belo sorriso e um batom nos lábios marcando minha história. Tinha certeza de que iria dar certo. Infelizmente, o velho espelho, companheiro de toda a minha infância e da adolescência, quebrou-se e não viu minha mudança, mas creio que, no fundo, ele sabia que agora aquela menina se chama Marina. É, realmente sou Marina! Aquela que tem no seu nome a origem do mar que traz a crença e a fé nos orixás, a luta pelos direitos LGBT e a certeza de que hoje sou uma mulher transexual.