Kuala Lumpur, Malásia – Nas últimas três décadas, além de próspera, esta nação se tornou também o país mais gordo da Ásia, onde quase metade da população adulta tem problema de sobrepeso ou obesidade. Por isso, há vários anos, o Dr. Tee E Siong, um dos maiores especialistas nacionais em nutrição, decidiu agir, organizando um estudo minucioso das dietas locais, hábitos e estilos de vida.
A pesquisa, conduzida por cientistas da Sociedade de Nutrição da Malásia, presidida por Tee, produziu vários artigos para publicações acadêmicas, mas os colegas não foram os únicos a fazer a resenha do material: ele também foi analisado pela Nestlé, maior empresa alimentícia do mundo, que financiou a empreitada.
Entre os textos, havia um que concluía que as crianças que tomavam bebidas maltadas no café da manhã – categoria dominada aqui pelo Milo, achocolatado em pó feito pela Nestlé –, tinham maior tendência de serem ativas fisicamente e passarem menos tempo na frente do computador ou da TV.
O projeto é um exemplo típico de uma prática que começou no Ocidente e se instalou, juntamente com os níveis crescentes de obesidade, nos países em desenvolvimento: parcerias financeiras abrangentes entre os conglomerados alimentícios e nutricionistas, políticos e acadêmicos.
Com o objetivo de expandir seus mercados, essas multinacionais estão investindo pesado nos países em desenvolvimento, como Índia e Camarões, para obter o apoio dos cientistas locais. O setor custeia projetos de pesquisa, paga consultoria a estudiosos e patrocina as maiores conferências sobre nutrição quando as vendas dos ultraprocessados dispararam: só na Malásia, aumentaram mais de 105 por cento nos últimos cinco anos, de acordo com a empresa de pesquisa de mercado Euromonitor.
Além da Nestlé, o trabalho de Tee foi custeado pela Kellogg's, PepsiCo e Tate & Lyle, uma das maiores fabricantes de xarope de milho com alto teor de frutose, entre outros produtos. Ele justifica dizendo que os cientistas precisam de cooperação e apoio financeiro das empresas, que têm condição de fornecer os recursos tão necessários.
E observou que a cozinha nacional tradicional, com seus curries e outras comidas de rua cheias de açúcar, são os principais causadores da obesidade, afirmando também que trabalhar com camelôs e empresas de fundo de quintal para tornar seus itens mais saudáveis é muito difícil – ao contrário das grandes empresas, cujo processo é mais simples e produtivo.
Tee afirma que usa sua posição para pressionar o governo a tomar medidas regulatórias importantes, incluindo a lei de 2003, que exigia que a indústria alimentícia incluísse as informações nutricionais – os níveis de gordura, açúcares e proteína – nas embalagens.
"Fomos um dos primeiros países da Ásia a tomar essa medida", explica.
Para a Nestlé, é importante colaborar com as iniciativas de melhoria da nutrição ao redor do mundo.
"A Nestlé acredita que as questões de saúde pública só podem ser resolvidas por um grupo de empresas grandes, com o poder de cumprir um papel catalisador", informou a corporação, através de e-mail.
A companhia lê os artigos antes de serem publicados como parte do acordo fechado com a Sociedade de Nutrição de Tee, e declara que faz a resenha do material "para garantir que a metodologia esteja cientificamente correta".
Ainda em sua declaração: "Abordamos as pesquisas de forma transparente e aplicamos padrões rígidos para garantir a integridade do projeto até a publicação do estudo".
Recentemente levamos Tee para um passeio aos corredores feericamente iluminados do supermercado em um subúrbio da capital malaia. As prateleiras estavam lotadas com itens hoje encontrados em qualquer parte do mundo: macarrão instantâneo, molho pronto de tomate, refrigerante e uma infinidade de cereais adoçados, incluindo Stars, da Nestlé, cujo conteúdo tem 28 por cento de açúcar e um círculo em vermelho vivo, na parte inferior da embalagem, que diz: "Considerada a opção mais saudável pelo Ministério da Saúde da Malásia".
"Temos que parar de culpar as multinacionais; o verdadeiro problema não é o tipo de comida que a população consome, mas as quantidades, e o estilo de vida que leva", afirma Tee.
"Os malaios estão sempre comendo. E não se exercitam. Não estou falando nem de ir à academia, mas de fazer uma caminhada. É fácil e barato. Tem que levantar da cadeira e se mexer!", completa.
Moldando o pensamento coletivo
Dois membros do alto escalão do Ministério da Saúde recentemente se reuniram para discutir a questão da obesidade e o papel de Tee na resposta nacional ao problema.
"Eu o admiro muito. Não há ninguém que o substitua como presidente da Sociedade de Nutrição", exclama Zalma Abdul Razak, responsável pela seção de nutrição do ministério.
De acordo com seus relatórios anuais, a instituição recebeu milhares de dólares do setor alimentício, incluindo pelo menos US$188 mil da Nestlé e da Cereal Partners Worldwide, uma joint venture entre a suíça e a General Mills, para o estudo do café da manhã. Além disso, teve outros US$44 mil diretamente da Nestlé para outros projetos e parcerias; cerca de US$11 mil da indústria de laticínios; US$10 mil da Ajinomoto, que faz aspartame; mais US$40 mil da empresa de comida para bebê Philips Avent, para projetos relacionados à nutrição maternal e infantil.
A PepsiCo e a Tate & Lyle custearam a conferência anual da sociedade, além da Southeast Asia Public Health Network de Tee, mas ambas se recusaram a divulgar os valores.
O ethos da parceria corporativa também está presente em inúmeras iniciativas de saúde na Malásia: um comitê do Ministério da Saúde se uniu à Federação de Fabricantes Malaios, que inclui representantes das grandes empresas alimentícias, para desenvolver um sistema de rotulagem para o público que informe ao consumidor quais os alimentos processados "mais saudáveis" em relação a outros, da mesma categoria.
Entre as opções de que obtivemos essas informações estão os cereais açucarados infantis e o Gatorade Quiet Storm, que contém 16 gramas de açúcar por porção e recebeu uma nota baixa por seu conteúdo nutricional do "Food Educate", aplicativo que avalia diversos alimentos e recebeu vários prêmios.
Para S. Subramaniam, ministro da Saúde malaio, não é função do governo vigiar as multinacionais alimentícias.
"É mais uma questão de cooperação", resume.
Porém, alguns nutricionistas dizem que as diretrizes alimentares do país, que Tee ajudou a definir, não são tão rígidas em relação ao açúcar como deveriam. O guia estimula o consumo de grãos e cereais e limita a gordura entre vinte e trinta por cento das calorias diárias – recomendação que foi retirada do manual norte-americano, em 2015, depois que ficou comprovado que a dieta pobre em gorduras não só não reduz a obesidade como pode contribuir para o problema.
"O financiamento corporativo da ciência nutricional na Malásia enfraquece o combate ao consumo de açúcar e alimentos processados", afirma Rohana Abdul Jalil, especialista formada em Harvard que trabalha em Kelantan, cujo índice de obesidade é tão alto quanto o das metrópoles, apesar de ser uma região rural.
"Nunca houve uma campanha explícita e agressiva contra o açúcar", completa.
Ela atua em Kota Bharu, capital do estado, onde há barraquinhas e carrinhos na porta das escolas vendendo copos imensos de refrigerante, vários tipos de chocolates e salgadinhos de milho e arroz nos sabores camarão e queijo.
Rohana dá aulas de conscientização alimentar e ainda se surpreende ao perceber que muitos participantes não têm a mínima consciência dos perigos do excesso do consumo de açúcar.
A nutricionista, que não recebe verba das grandes empresas, promove uma alimentação básica, com muito arroz integral nativo e outros legumes e verduras da terra.
E critica os documentos resultantes do estudo sobre o café da manhã feito pela sociedade de nutrição. Além do relatório que liga as bebidas maltadas à maior disposição para exercícios físicos e menos tempo diante da tela de TV/computador, Tee e seus colegas publicaram uma análise voltada para os cereais matinais, que não fazem parte da dieta malaia, classificando-os como "importante fonte de nutrientes", embora tenha revelado também um alto teor de açúcar.
Por sua vez, Tee diz que os riscos de obesidade no país seriam maiores sem a ajuda das multinacionais e que não poderia realizar seus objetivos sem a ajuda delas.
"Há quem diga que não devíamos aceitar dinheiro para nossos projetos, nossos estudos, nossas pesquisas. Sei muito bem disso. Tenho duas escolhas: não fazer nada ou trabalhar com os conglomerados", conclui.
Por Thomas Fuller, Anahad O'connor e Matt Richtel