A enchente de maio fez crescer o abandono de veículos nas ruas de Porto Alegre. Muitos carros inutilizados após ficarem submersos acabaram deixados nas vias da Capital, somando-se aos que já haviam sido descartados antes da catástrofe.
Segundo levantamento da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) solicitado por Zero Hora, de janeiro a novembro de 2024, foram 965 casos reportados — 34% a mais do que os 717 do mesmo período de 2023 —, sendo 635 deles (ou 65%) a partir de maio, quando a inundação atingiu a Capital.
Se consideradas as ocorrências de 2022 o crescimento é ainda maior: 63% (veja o gráfico abaixo).
São considerados neste balanço todos os casos em que a EPTC é acionada para averiguar um abandono de veículo, ainda que nem todos resultem em guincho. Para ser considerado um veículo abandonado, ele tem de estar estacionado em via pública por pelo menos 30 dias e apresentar mau estado de conservação.
O número de ocorrências desse tipo que chegam aos agentes vem de uma crescente ao longo da última década, decaiu durante a pandemia e voltou a crescer com o fim da crise sanitária. Esse crescimento é, em grande parte, consequência do evento de maio, na avaliação do coordenador de Inspeção Veicular da EPTC, Fábio Rodrigo Baum.
É possível comparar com outros anos e perceber que a enchente ajudou para esse aumento. A gente identifica tanto dentro da área onde houve alagamento quanto em outras aqueles que foram afetados. Não é difícil perceber que o veículo foi alagado quando depositado em via pública.
FÁBIO RODRIGO BAUM
Coordenador de Inspeção Veicular da EPTC
O processo de recolhimento desses veículos, desde a notificação do proprietário até a retirada das ruas, pode durar meses (confira as etapas abaixo) e também foi impactado pela inundação. Quando se trata de carros pertencentes a vítimas da catástrofe, por exemplo, o órgão avalia caso a caso e pode alterar prazos e procedimentos para "não prejudicar as pessoas que já tiveram muitas perdas".
Passados sete meses das cheias, a maioria dos veículos abandonados já foi removida dos bairros mais castigados, mas eles não estão exclusivamente em áreas inundadas. Baum ilustra que há casos de carros que ficaram submersos, mas foram encontrados em regiões onde a água não chegou.
O maior número de ocorrências registradas neste ano foi no bairro Santa Rosa de Lima, na Zona Norte, com 50 casos (veja as demais no mapa abaixo).
— É possível que os proprietários, antes de abandonar o veículo, o deixem em outros locais, próximo a residências de familiares, por exemplo. Ou ainda que haja pessoas que comprem esses carros para vender as peças, mas não têm um lugar adequado para armazená-los e deixam em via pública — explica o Coordenador de Inspeção Veicular da EPTC.
Na Zona Norte, carro está na rua há quase um ano
Na Rua Max Juniman, no bairro Humaitá, na Zona Norte, ao menos três veículos permaneciam em situação de abandono até a manhã do dia 10 de dezembro, quando a reportagem esteve no local. A via ficou alagada por cerca de um mês.
Ao longo deste ano, a cena de carros sendo guinchados na rua se repetiu com frequência aos olhos de Sílvio Carlos da Luz, 61 anos, porteiro de um condomínio.
— Foi muita movimentação (de guinchos). Pode contar para mais de 20 carros (removidos). Tudo ficou submerso e depois esperaram a água baixar para começar a remover os carros. Isso só em frente ao prédio — conta.
Entre os que permaneceram, chama a atenção um Peugeot 307 azul, coberto de sujeira, com folhas e galhos acumulados no para-brisas e com grama brotando do entorno dos pneus. No canto superior direito do vidro dianteiro, uma notificação da EPTC indica que o veículo já estava abandonado três meses antes da enchente. Segundo o documento, a denúncia foi formalizada no dia 7 de fevereiro.
Já a notificação foi feita apenas oito meses depois, no dia 22 de outubro. O órgão afirma que a demora ocorreu pois os esforços na região ficaram concentrados em minimizar os danos provocados pela enchente.
Moradores do condomínio onde Sílvio trabalha se queixam da sujeira e do fato de o carro ocupar uma vaga na rua há pelo menos 10 meses.
— Esse carro está enfeando a nossa nossa rua. Também nos preocupa que possa aparecer bicho perto dele, e não sabemos de quem é. Se fosse de um morador, até teria conversado com ele, mas não é — conta um morador, que preferiu não se identificar.
Problema de saúde pública
A preocupação dos moradores do Humaitá tem fundamento. Para além da ocupação de vagas para estacionar e da poluição visual, automóveis abandonados em mau estado de conservação são uma fonte de proliferação de doenças transmitidas direta ou indiretamente por animais que se instalam nas carcaças.
Pessoas que vivem próximas ou entram em contato com estes veículos correm o risco de contrair dengue, leptospirose ou sofrer picadas de animais venenosos como aranhas e escorpiões.
O carro, quando fica parado, se torna um refúgio para animais se esconderem nele. Próximos de residências, pode acontecer de crianças ou até adultos abrirem o carro para manusear alguma coisa e correrem esse risco. Além disso, é uma fonte de acúmulo de água, que parada por certo tempo pode atrair a procriação de mosquitos, como Aedes Aegypti.
PAULO GEWEHR
Infectologista e diretor da Sociedade Gaúcha de Infectologia
Qualquer tipo de manuseio em veículos nessas condições deve ser feito com profissionais especializados em higienização. No entanto, nesse tipo de caso, a orientação é para que ele seja removido o quanto antes.
— Da maneira que a gente não pode deixar lixo acumulado na rua, o carro quando fica abandonado, sem os cuidados de higiene e limpeza, também possui o mesmo raciocínio — complementa Gewehr.
Sem condições de arcar com remoção, donos mantêm carros parados
Proprietários de carros atingidos pela enchente que tinham seguro automotivo e foram indenizados pelas seguradoras puderam arcar com a remoção dos veículos. Já quem não tinha seguro nem condições financeiras de pagar pelo recolhimento acabou abandonando ou, em alguns casos, ficando com o bem inutilizado nas garagens ou na rua mesmo, na frente de casa, mas monitorando o automóvel.
É o caso do autônomo Celiomar Cardoso, 55 anos, que não abandonou seu Gol 92, mas lamenta que não tenha mais condições de dirigi-lo. O morador do bairro Sarandi garante que o funcionamento estava perfeito até maio. Depois que as águas baixaram, o veículo estragou e está, desde, então parado ao lado da sua casa, na Rua José Huberto Bronca.
— Vazou todo óleo, não tem como refazer a parte elétrica, ele está perdido, não tem destino. Ainda não sei o que fazer. Acho que apenas mandando pro ferro velho — lamenta.
Sem seguro, Celiomar diz que não tem condições de arcar com um serviço de guincho. O carro ainda apresenta marcas de barro e sujeira por dentro e por fora.
— Queriam me cobrar R$ 500 (para ser retirado). Sem condições — pontua.
Etapas do processo para remoção de carros abandonados
- A EPTC é acionada por moradores pelos canais 118, 156 ou site da prefeitura. Os próprios agentes podem constatar a irregularidade;
- Após a denúncia, é feita a vistoria do carro para verificar se enquadra em situação de abandono;
- Se constatado o abandono, a EPTC tem até 30 dias após a denúncia para adesivar o carro e notificar o proprietário;
- A notificação é feita pelos Correios ou, caso o endereço não seja localizado, por meio do Diário Oficial de Porto Alegre (DOPA);
- Quando notificado, o proprietário tem até 10 dias para fazer a remoção;
- Se ele não cumprir o prazo, o veículo é guinchado pela prefeitura e levado a um depósito;
- Ele ficará no local por até 90 dias. Nesse período, ainda poderá ser resgatado pelo dono;
- Passado esse tempo, o veículo é leiloado ou encaminhado para reciclagem.