Quatro meses depois da histórica enchente de maio de 2024, a rotina dos moradores de Eldorado do Sul segue impactada pela tragédia. O município foi, proporcionalmente, o mais atingido do Rio Grande do Sul pela inundação.
Conforme o balanço da prefeitura, pelo menos 5.400 pessoas ainda não voltaram a morar na cidade — e muitas não devem retornar. É o caso de Marisa Lima, funcionária pública que trabalha como secretária em uma escola do município. Ela era moradora de Eldorado havia 57 anos e após a enchente se mudou com a família para Porto Alegre.
— Eu coloquei a minha casa à venda, não vou voltar para Eldorado Sul. Parece uma cidade fantasma, muitos comércios estão fechados e não têm perspectiva de abrir novamente, pois as pessoas não têm um auxílio, não têm dinheiro para recomeçar. Eu e meu marido, a minha filha mais nova com a filha dela, que morava junto com a gente no mesmo pátio, viemos para Porto Alegre — afirma Marisa.
Uma estimativa da prefeitura de Guaíba aponta que cerca de 10 mil moradores de Eldorado do Sul estão vivendo na cidade vizinha.
Dos cerca de 42 mil habitantes de Eldorado, 34 mil foram atingidos. A estimativa é que 80% das residências tenham sido danificadas, sendo que o Executivo municipal já constatou que 1.500 delas foram condenadas, sem possibilidade de recuperação.
Os bairros mais prejudicados foram Itaí, Picada, Cidade Verde, Vila da Paz e Chácara.
— O nosso problema são esses bairros que sempre são afetados. Com essa enchente, muitas residências foram destruídas ou estão interditadas. E também pelo medo de ter uma outra enchente — explica o coordenador da Defesa Civil municipal, Josimar Cardoso.
Moradora do bairro Picada desde os 17 anos, Maria Clair Montin, 58, teve a casa levada pela água e está vivendo em uma moradia de um cômodo, ao lado de onde ficava a residência antiga.
— Fiquei com uma pecinha aqui que também pode cair a qualquer hora. Tanto eu como a minha filha queremos sair de Eldorado. A gente não tem segurança mais, né? Aqui não tem mercado, não tem nada. Eu quero ter direito ao Compra Assistida — explica Maria.
O Compra Assistida é uma das ações da União para atender quem está desabrigado, com aquisição de casas já existentes que serão doadas aos atingidos. Foram cadastradas 1.598 famílias de Eldorado do Sul no sistema do governo federal, que deverá analisar quem vai receber um imóvel neste programa.
Além disso, a União também anunciou a construção de 900 moradias pelo Minha Casa, Minha Vida. A previsão é que o projeto seja desenvolvido em um terreno do bairro Centro Novo.
Moradores do bairro Picada relatam que muitos seguem em busca do Aluguel Social, mas têm encontrado dificuldades para apresentar a documentação necessária. Segundo a prefeitura, 130 famílias estão sendo atendidas pelo auxílio municipal. Outras 200 estão com o cadastro em análise para o programa estadual.
— O que se tem dificuldade em Eldorado é de você encontrar casas para que as pessoas possam alugar. Há uma exigência de que a casa tem que estar regularizada e tem certos critérios para que as pessoas possam alugar essas casas. Muitas pessoas estão morando em casas sem as mínimas condições de moradia ainda — explica Margenato Matos, que também atua como coordenador da Defesa Civil de Eldorado do Sul.
Em junho, a prefeitura e o governo do Estado firmaram um convênio para que 250 moradias provisórias fossem instaladas no município. Desde então, um impasse sobre o local para esta instalação impede o avanço do projeto.
Economia afetada
Além da casa, Jussara Kaveltz, 48, perdeu o comércio da família. O mercado e a ferragem que levavam o sobrenome dela ficavam na Rua dos Pilares, no bairro Picada, e tiveram as estruturas levadas pela água.
Agora, Jussara está desempregada. Ela não pensa, entretanto, em retomar o negócio no mesmo local.
— Aqui eu não quero mais. A situação é muito crítica, e, a cada ano que passa, tu não sabe como é que vão ser as enchentes. Não tem como tu reconstruir isso aqui. Eu já fiz um orçamento pra tentar voltar, mas não dá — lamenta.
Jussara passou 14 dias dormindo no carro, à margem da BR-116. Chegou a ficar um tempo na casa de uma amiga no bairro Parque Eldorado e agora está morando de aluguel com a filha no centro da cidade, mas ainda aguarda Aluguel Social.
— A gente tá pensando como é que vai ser a situação da gente sobre as casas. Até agora nada. Fica aquele empurra-empurra e não resolvem nada. Nosso psicológico tá muito abalado. Tem dias que a gente levanta, assim, numa situação crítica de nervos, sabe? Tu vê uma chuvinha, tu já não sabe se vai encher, se não vai dar tudo de novo — afirma Kavetz.
Um balanço da prefeitura aponta que cerca de 5 mil empresas foram atingidas pela enchente de maio, sendo 3 mil microempreendedores. Do total, 35% ainda não retornaram às atividades.
— Queremos fazer também uma revitalização dos pontos de estar da cidade, que são as praças, as entradas da cidade, tentar revitalizar, deixar um pouco mais bonita, até para ser um convite para que as pessoas possam sentir um pouquinho mais de esperança de que a cidade vai voltar a ser o que era e possam retornar novamente para os seus lares — afirma Josimar Cardoso, da Defesa Civil.
No bairro Cidade Verde, farmácia, mercados e até agência bancária permanecem vazios. Com o fechamento dos estabelecimentos, a Secretaria Municipal da Fazenda estima que deixou de arrecadar pelo menos R$ 2 milhões de ICMS.
Prevenção contra novas cheias
A prefeitura afirma que trabalha em três frentes para o sistema de prevenção contra cheias. A primeira é o investimento no dique da cidade, que está com orçamento de R$ 531 milhões aprovado pelo governo federal.
A obra já estava sendo planejada antes da enchente deste ano, mas deverá passar por uma revisão de cotas.
Conforme o ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social do governo federal, que até quarta-feira (11) respondia pela Secretaria Extraordinária de Apoio à Reconstrução do RS, Paulo Pimenta, o projeto será licitado ainda antes do final do ano.
Na semana que vem, uma reunião entre o governador Eduardo Leite e o presidente Lula deve oficializar o desenho da gestão da obra. A tendência é que União e governo do Estado dividam a responsabilidade.
A segunda iniciativa está sendo negociada com o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e diz respeito à BR-116. No entendimento da prefeitura, a rodovia serviu como um dique, mas represou a água no centro da cidade. A intenção é construir uma ponte seca para que a água passe por baixo em casos de alagamentos.
O terceiro pleito é a dragagem dos rios, discutida com o governo do Estado. Além disso, a Defesa Civil de Eldorado do Sul afirma que elaborou um novo plano de contingência, que inclui a criação de núcleos comunitários, responsáveis por convocar os moradores para orientar e monitorar situações de risco.
No bairro Picada, entretanto, o problema é considerado mais complexo. A Defesa Civil afirma que prefeitura e Dnit estão avaliando as residências, mas que o dique planejado não contempla a área, que está à margem do Rio Jacuí.
— Tem que se pensar aí nesses estudos da Região Metropolitana como é que vai se tratar a questão das ilhas. Isso já não só compreende ali a Picada, Sul e Norte, como também a Ilha da Pintada, Ilha dos Marinheiros, todas essas outras áreas que são áreas alagadiças. Provavelmente as casas que ali foram destruídas, as pessoas não conseguirão mais voltar para ali. Elas vão ser relocadas em outra área — explica Margenato Matos, um dos coordenadores da Defesa Civil de Eldorado.
Os moradores do bairro fundaram uma associação, por meio da qual recebem doações e se organizam para ajudar quem segue fora de casa a acessar um dos programas do poder público.
— Não é possível que uma pessoa more 19 anos, 20 anos num lugar, pagando seus impostos, e não seja abraçada pelo Poder Público. Não pretendo voltar pra esse bairro aqui, mas eu sou filho de pescador profissional, tem muitos pescadores aqui, essas pessoas precisam de auxílio. Não pode tirar uma família daqui e colocar no meio de uma cidade, sendo que eles dependem da água pra sobreviver — afirma Cleiton Rodrigues, presidente da associação.