Contratos assinados entre a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), órgão da prefeitura de Porto Alegre, e a Pousada Garoa apontam que é responsabilidade do poder público municipal fazer a fiscalização da qualidade dos serviços prestados. Também há previsão de sanções administrativas e rescisão contratual em caso de descumprimento de obrigações assumidas pela hospedaria (confira a documentação completa abaixo).
Na madrugada da última sexta-feira (26), um incêndio atingiu uma das unidades do pensionato, no número 305 da Avenida Farrapos, deixando 10 mortos e 15 feridos. A Fasc contrata a Pousada Garoa para obter vagas de moradia para pessoas em situação de rua e vulnerabilidade. A diária é calculada entre R$ 18,33 e R$ 18,53. Nos períodos de 2022 e 2023, a prefeitura chegou a ter cerca de 450 vagas nas 23 unidades da Pousada Garoa.
Após o sinistro, o maior registrado em Porto Alegre desde 1976, se multiplicaram os relatos de moradores sobre más condições de habitação, acúmulo de lixo, mau cheiro e uso de materiais inflamáveis no interior do alojamento, como divisórias de madeira. Em novembro de 2022, outra unidade da Pousada Garoa, na Rua Jerônimo Coelho, no Centro, havia sido atingida por um incêndio, com uma vítima fatal.
A edificação da Avenida Farrapos, onde o fogo ceifou 10 vidas, estava irregular, sem alvará ou sequer pedido de aprovação do Plano de Prevenção e Combate à Incêndio (PPCI).
O contrato 81.040/2022, assinado entre a Fasc e a Pousada Garoa, afirma, na cláusula quarta, que a fiscalização dos serviços será exercida pela prefeitura. O documento diz que é papel do município “adotar as providências necessárias para corrigir os eventuais vícios, irregularidades ou baixa qualidade dos serviços” e que o acompanhamento deve ser “zeloso e diário”. Também é registrado que o fiscalizador “deverá observar e fazer cumprir as legislações pertinentes e relativas à matéria”.
A Pousada Garoa cadastrou na prefeitura de Porto Alegre uma certidão de dispensa de alvará, a partir do fornecimento de informações em um sistema virtual autodeclaratório que presume a boa-fé do empreendedor. Essa modalidade foi adotada em Porto Alegre em 2020, após a aprovação da lei da “declaração municipal de liberdade econômica”, o que foi uma adequação local à legislação federal.
Consideradas de baixo risco de incêndio, as pensões podem ser dispensadas do alvará caso tenham área de até 200 metros quadrados, entre outros requisitos. Essa limitação está registrada tanto no sistema de autodeclaração da prefeitura quanto na legislação nacional de simplificação do registro e da legalização de empresas e negócios.
Na prática, a Pousada Garoa se cadastrou como atividade de baixo risco, dispensada de alvará, mas o seu imóvel de três pavimentos na Avenida Farrapos não se enquadraria na classificação por ter área maior do que o limite. Arquitetos e engenheiros estimam que a unidade tinha pelo menos 750 metros quadrados. O registro autodeclaratório de atividade de baixo risco, dispensada de alvará, teria deixado de observar os limites de área.
O sistema de autodeclaração alerta que os estabelecimentos podem ser “fiscalizados a qualquer tempo, a fim de verificar a veracidade das informações prestadas”, mas não há notícia sobre checagem da prefeitura junto à hospedaria neste quesito, ainda que as partes mantenham parceria para o acolhimento de pessoas em situação de vulnerabilidade. Um contrato que está em vigor até o final de 2024 prevê repasse anual de R$ 2,7 milhões da Fasc para a pousada. Conforme a página da Transparência do município, os pagamentos à hospedaria somam R$ 6,1 milhões entre 2020 e 2024.
Questionada sobre o possível enquadramento indevido como atividade de baixo risco, dispensada de alvará, a prefeitura contradisse o que informa no seu próprio sistema e afirmou que “a liberação de atividade econômica não está ligada à metragem do espaço físico”.
Situação semelhante de enquadramento é observada em relação à Lei Kiss, de abrangência estadual. Pela norma, estão dispensados da obtenção de alvará, chamado de Certificado de Licenciamento do Corpo de Bombeiros (CLCB), os empreendimentos classificados em risco de incêndio de grau baixo ou médio, com área total de até 200 metros quadrados. O prédio em que funcionava a hospedaria tinha área maior. Pelo seu porte, a pousada deveria ter um PPCI completo, com hidrantes, alarme de detecção e controle de materiais e revestimentos, o que implicaria em adotar estruturas menos inflamáveis para pisos, paredes, teto e telhado. O diagnóstico é do vice-presidente do Sindicato dos Engenheiros (Senge-RS), João Vivian.
O Corpo de Bombeiros informou que a Pousada Garoa jamais teve PPCI para a atividade de alojamento. Na edificação que incendiou, uma pessoa sem relação com a hospedaria chegou a aprovar um projeto de prevenção e combate a incêndio em 2019 para a operação de escritórios. Depois dessa fase, o requerente deveria executar as obras de implementação das medidas de prevenção, mas os bombeiros nunca foram chamados para a fiscalização posterior. Por isso, não se sabe se o plano chegou a ser, de fato, executado. E o alvará jamais foi emitido, nem mesmo para a finalidade de escritório. Segundo a direção da Garoa, a pousada passou a funcionar no endereço do sinistro somente em 2022.
Documentos solicitados pela prefeitura à pousada
A reportagem teve acesso a um dos processos administrativos realizados pela Fasc para adquirir vagas na Pousada Garoa. É um tipo de procedimento corriqueiro em que o município apresenta e justifica uma necessidade, faz pesquisas de preços, escolhe a modalidade de contratação e encaminha a assinatura da parceria.
No caso específico, tratou-se de uma contratação emergencial para aumentar a quantidade de vagas em dezembro de 2021, sob a justificativa de combater os efeitos da pandemia de coronavírus.
No curso do processo administrativo, a prefeitura e a Fasc não solicitaram à hospedaria documentação referente a prevenção de incêndio.
Entre os ofícios inseridos no processo, constam as certidões negativas da prefeitura de Porto Alegre, de débitos trabalhistas, do Ministério da Fazenda, da Receita Estadual e da Caixa Econômica Federal. Os documentos acostados asseguram que a empresa contratada, no caso a Posada Garoa, não tinha dívidas pendentes com os órgãos públicos. Também foi juntado ao processo administrativo uma certidão negativa de licitantes inidôneos do Tribunal de Contas da União (TCU). O papel certificava que a pousada não estava impedida de participar de licitações da administração pública federal.
Contrapontos
O que diz a prefeitura de Porto Alegre
Sobre eventuais falhas na fiscalização dos serviços prestados, o município destacou que está com Investigação Preliminar Sumária (IPS) e vistorias nas hospedarias em andamento. Por isso, a prefeitura disse que “não tem como antecipar o que será apontado pelas diligências”.
Sobre a autodeclaração de dispensa de alvará ter sido indevida, a prefeitura afirmou: “A liberação da atividade econômica por parte da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Turismo (SMDET) não está ligada à metragem do espaço físico e, sim, à classificação da atividade em si, que tem regulamento baseado na lei federal 13.874/19. Trata-se, portanto, de assuntos distintos. A Pousada Garoa está licenciada para operar na Avenida Farrapos, 305, desde 2021. Em relação apenas à atividade econômica, o empreendimento caracteriza-se como de baixo risco, e apresentou toda a documentação necessária para a liberação da operação. Já em relação ao risco apresentado pela atividade especificamente no imóvel em que o empreendimento está instalado, cabe ao Corpo de Bombeiros analisar e fiscalizar. A entidade possui legislação para seguir, especificamente a Lei Complementar Estadual nº 14.376/13, regulamentada pelo Decreto Estadual nº 51.803/14, e regulamento próprio.”
O que diz a Pousada Garoa
A reportagem contatou André Kologeski da Silva, proprietário da Pousada Garoa, e fez questionamentos sobre a inexistência de PPCI e o enquadramento supostamente indevido na autodeclaração municipal de dispensa de alvará. Não houve resposta.
Ele afirmou, em entrevista a GZH, que oferece serviços de boas condições para inquilinos de baixa renda ou em situação de rua. Também argumenta que precariedades em alojamentos são casos pontuais e defende a hipótese de o incêndio ter sido criminoso.