A prefeitura de Porto Alegre prepara uma alteração profunda no sistema de recolhimento, separação e destinação de lixo doméstico na Capital. O plano é substituir ainda em 2024 o sistema atual, em que dezenas de empresas são contratadas individualmente por licitações, pelo modelo de parceria público-privada (PPP), no qual uma única companhia fica responsável por toda a gestão do lixo doméstico da Capital.
De acordo com a secretária de Parcerias da Prefeitura de Porto Alegre, Ana Pellini, a PPP vai destinar a uma só empresa os serviços que atualmente estão distribuídos em 70 diferentes contratos. Na avaliação de Pellini, a mudança tem potencial de melhorar a gestão dos resíduos e evitar os sequenciais problemas de prestadoras que vencem as licitações, mas não oferecem qualidade ou abandonam o serviço.
— Atualmente, a gente faz muitos contratos ruins: uma empresa quebra, em outro contrato a empresa não faz o que teria que fazer. Fazemos contratos com a lógica do menor preço, e daí a empresa oferece um preço que não pode cumprir. A PPP, que nós vamos fazer, permite que se faça um (único) contrato mais longo — diz a secretária de Parcerias da Prefeitura de Porto Alegre, Ana Pellini.
A prefeitura diz que o formato de PPP para o lixo carrega outro benefício: parar de remunerar as empresas pelos recursos utilizados e pela quantidade de lixo recolhido, e passar a pagar a parceira privada pelo atingimento de metas.
— Nós não vamos mais medir o serviço em termos de número de caminhões, de funcionários, quantas vezes passam nas ruas. Na PPP, o poder público paga um valor pelo todo do serviço. Nós estabelecemos metas e a empresa vai receber se as metas forem atingidas — aponta Pellini.
Novo modelo exige garantias para afastar risco de colapso
A preocupação central da prefeitura ao migrar para o sistema de PPP do lixo é que, ao transferir a série de atuais contratos para uma única empresa, eventuais deficiências da parceria privada teriam uma magnitude maior e poderiam colapsar o sistema de lixo da cidade.
— Sabe o que eu tenho medo? Meu maior medo é não selecionar uma empresa com capacidade para fazer o serviço. A gente vai tentar diminuir os riscos ao máximo, mas tem que ter uma competição, não pode ser um edital que elimine todo mundo. Se uma empresa ruim ganha é uma empresa prestando um mau serviço para 50 áreas — destaca Pellini.
Para reduzir os riscos, a secretária diz que a PPP terá um ente verificador de qualidade independente e que as metas de gestão serão atualizadas a cada cinco anos.
Eduardo Lehnen, coordenador do Grupo Especializado de Fiscalização das Desestatizações do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RS), aponta duas medidas fundamentais para reduzir os riscos de insucesso e colapso do sistema em uma PPP deste porte. O primeiro é exigir garantias sólidas das empresas interessadas no negócio.
— O edital tem que trazer garantias de que a empresa tem condições de executar os investimentos. Uma coisa que usualmente se vê nas PPPs é os sócios integralizarem o capital social e fazerem o aporte de recursos na empresa. Existem ainda várias outras garantias, mecanismos de seleção para que não se traga aventureiros, que entrem e depois abandonem o negócio — diz Lehnen.
A segunda exigência para a PPP ser bem sucedida no longo prazo, conforme o auditor do TCE, é uma fiscalização permanente e rígida por parte da prefeitura, durante os 35 anos do contrato.
— É muito importante, é um dever da Prefeitura, ter um acompanhamento ao longo de toda PPP da situação financeira da empresa, antes que ocorra uma situação ali de insolvência. Claro que não basta simplesmente assinar o contrato, tem todo um processo de fiscalização e o Tribunal está atento a isso. É preciso verificar se o serviço está sendo executado nos padrões que foram contratados, além da saúde financeira das empresas. É algo que necessita de um acompanhamento bem próximo do poder concedente — aponta Lehnen.
PPP tem potencial de ampliar reciclagem, diz consultor
João Victor Domingues, advogado e consultor na área de concessões e PPPs, avalia como positiva a iniciativa da prefeitura de Porto Alegre. Ele defende que no sistema atual, em que cada empresa é contratada para uma parte do tratamento de resíduos, não há incentivo à eficiência.
— No sistema atual, tudo é calculado por preço unitário. Quantas toneladas de lixo a empresa recolhe em Porto Alegre? Aí a prefeitura paga por isso. Quantas toneladas de lixo outra empresa carrega até o aterro, em Minas do Leão? A transportadora, quanto mais lixo carregar, mais ganha — exemplifica o consultor.
De outro lado, segundo Domingues, quando uma única empresa responde por todo o sistema, com um preço fixo, há interesse da parceria privada em melhorar o reaproveitamento de material para ampliar o faturamento.
— Vai se melhorar a qualidade do serviço porque tu se incluir tudo dentro de um único contrato, ou seja, a empresa vai ser responsável por fazer a coleta, a valorização desse resíduo em sua separação e vai ser responsável, depois, por mandar o restante para o aterro sanitário. Onde está a diferença? A empresa não ganhará por tonelada de lixo. Ela ganhará por indicadores de desempenho, pela limpeza da cidade — defende Domingues.
O consultor também acredita que a PPP deve prever um sistema de destinação de resíduos ambientalmente mais eficiente do que o atual – no qual o todo o lixo não reaproveitado da Cidade é transportado em caminhões, queimando combustível fóssil, até o Aterro Sanitário de Minas do Leão, a cerca de 90 km do centro de Porto Alegre.
Incerteza sobre associações de recicladores
Um dos temas sensíveis da mudança de modelo diz respeito às 16 tradicionais associações e cooperativas que integram o atual sistema de triagem e reciclagem da cidade.
— Tem as cooperativas de catadores, que a gente quer incluir no projeto, quer, de alguma forma, trazer benefícios para eles também. Mas essa é a parte que ainda está sendo finalizada (no projeto da PPP) para ver como nós vamos incluí-los — diz Pellini.
A valorização dos catadores e recicladores é uma das metas previstas no Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Planares), que foi atualizado em 2022 pelo governo federal. O texto destaca que o resíduo sólido reutilizável e reciclável é um “bem econômico e de valor social, gerador de trabalho e renda e promotor de cidadania”, e que deve viabilizar “a inclusão socioeconômica e produtiva dos catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis”.
— A partir da política nacional de resíduos sólidos, é preciso melhorar a remuneração dos agentes de reciclagem, diminuir o percentual de pessoas que vão para um aterro sanitário. São indicadores de performance que devem ser obedecidos por qualquer projeto, inclusive na forma de uma PPP — lembra Domingues.
Cronograma da PPP
A prefeitura vai detalhar o projeto de PPP e abrir a consulta pública até o fim de março – com duração de 30 dias.
Depois disso, a proposta de parceria público-privada (acompanhada dos estudos de viabilidade técnica e financeira) será levada para a análise do TCE – processo que deve ser concluído até julho. Um dos elementos que o Tribunal avalia para liberar a PPP é o chamado custo-benefício, isto é, se a troca de modelo vai reduzir o valor gasto pelo poder público.
— O município não pode seguir adiante e fazer a licitação se ele não realizou esse estudo, e esse estudo tem que ser robusto e comprovar que há uma vantajosidade na escolha da PPP — garante Lehnen.
Se a análise for favorável, entre agosto e setembro o edital será lançado, conforme o cronograma da prefeitura. Em um cenário sem contestações judiciais e com interessados, a vencedora assumiria o negócio a PPP entre novembro e dezembro, ainda segundo projeção da prefeitura.