Uma comunidade autodeclarada como quilombo, em uma área nobre de Porto Alegre, vive dividida entre os que desejam permanecer e os que querem sair do local. A chamada Vila Caddie, ou Quilombo Kédi, busca reconhecimento do governo federal para se tornar um território quilombola, espaço ocupado por descendentes de pessoas que resistiram à escravidão.
Ao mesmo tempo, a área é motivo de um imbróglio judicial que obriga o município a reassentar os moradores. Oitenta pessoas negociam saída da área com a prefeitura, sendo que cerca de 40 já entraram em acordo para viver em outro local.
Localizada entre as avenidas Frei Caneca e Nilo Peçanha, no bairro Boa Vista, ao lado do Country Club — o nome Caddie, inclusive, vem da função dada à pessoa que carrega os tacos dos golfistas —, a comunidade abriga hoje cerca de cem famílias. Mesmo que próximo a terrenos valorizados, a vila apresenta estrutura precária: muitas residências, por exemplo, não têm acesso a saneamento básico, rede de água e luz.
Em 2014, o Ministério Público (MP) entrou com ação pedindo que a prefeitura fornecesse melhores condições aos moradores. A Justiça entendeu que a única forma de atender o pedido seria desocupar o espaço e condenou o município a fazer o reassentamento.
O Executivo recorreu, mas, em 2020, o processo transitou em julgado, quando se esgotam todos os recursos. Com isso, começou a buscar alternativas para cumprir a decisão.
Reconhecimento como quilombo
A proposta em andamento prevê a construção de uma via no local, junto a uma área verde — ambas previstas no Plano Diretor —, que serviria de ampliação da Frei Caneca. A operação conta com recursos de empresas que estão construindo um empreendimento ao lado da vila.
A medida, conhecida como Termo de Conversão em Área Pública (Tcap), prevê que uma empresa utilize parte do valor da área comprada para investir em melhorias em vias públicas. O documento foi assinado em setembro de 2022.
No entanto, enquanto a prefeitura tratava de cumprir a decisão da Justiça, um novo processo envolvendo a Vila Caddie passou a tramitar. Em 2021, o Ministério Público Federal (MPF) entrou com pedido de reconhecimento da comunidade como quilombo, após uma representação de parte dos moradores.
Um ano depois, foi publicado um estudo do Núcleo de Estudos de Geografia e Ambiente (Nega) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Conforme o documento, famílias que habitaram a área no início do século 20 descendem de grupos que fugiram da escravidão e passaram a adotar práticas de ancestralidade e preservação das culturas africanas.
Em março de 2023, a Fundação Cultural Palmares, ligada ao Ministério da Cultura, publicou portaria certificando a autodeterminação da Caddie como uma comunidade quilombola. O aval permitiu que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) iniciasse o processo de reconhecimento do território.
Embora uma ação leve a outra, tratam-se de processos distintos: enquanto a Palmares reconhece o direito de uma comunidade se reconhecer quilombola, o Incra dá o aval para que ela tenha um território próprio.
Segundo o responsável pelo Serviço de Regularização de Territórios Quilombolas do Incra, Sebastião Henrique Santos Lima, o processo pode levar anos. Caso seja confirmado o reconhecimento, o terreno passa a ser propriedade do próprio quilombo e fica proibida a retirada de moradores por parte da prefeitura.
Durante a análise, no entanto, a área segue sob responsabilidade do município. O trabalho dos técnicos busca mapear quais as partes em que há moradores que se reconhecem como quilombolas, podendo se tratar de uma parcela ou da totalidade do terreno.
— Quando reconhecido (o território), a proprietária da área é a associação representativa da comunidade. Ela não pode vender, penhorar ou parcelar o terreno. Mas as pessoas têm o direito de fazer o que quiserem. E o Incra não tem poder de impedir que elas façam qualquer tipo de acordo. O que vamos fazer é o processo da comunidade quilombola até onde essa comunidade quiser que seja feito — reitera Lima, se referindo à parte dos habitantes da Caddie que não se reconhecem como quilombolas.
"Não nos declaramos parte do quilombo"
Parte dos moradores se instalou no local após a chegada de funcionários do clube de golfe Porto Alegre Country Club, a partir da metade do século passado. O clube e a comunidade ficam divididos por um muro. Com o tempo, outras famílias se estabeleceram no espaço.
É o caso da gerente comercial Daphne Teixeira, 27, que mora há 12 anos na Caddie e alega problemas estruturais no local como motivo para deixá-lo. Ela afirma que o reconhecimento como quilombo não é unânime.
— Nós não concordamos, não nos declaramos parte do quilombo. A gente respeita até, mas pensa bem, a gente iria morar em um lugar que não é nosso — afirma.
A versão inicial do termo assinado pelas empresas responsáveis pelo empreendimento ao lado da comunidade previa um pagamento de bônus-moradia no valor de R$ 93 mil. Nesse caso, os moradores seriam direcionados a uma unidade habitacional a ser construída em outro ponto da Zona Norte.
Em reunião feita no final do ano passado, contudo, não houve interessados no acordo. Nos meses seguintes, a Defensoria Pública, a pedido dos moradores, passou a mediar as negociações, em que novos valores foram oferecidos na forma de indenização, sem que houvesse o direcionamento ao conjunto habitacional. Isso aumentou o número de interessados em deixar o local.
Segundo a prefeitura, 80 pessoas manifestaram o interesse. Destas, cerca de 40 acordaram em sair das casas por uma indenização de R$ 180 mil.
Durante o mês de setembro, o Departamento Municipal de Habitação (Demhab) fez visitas às moradias das famílias que devem deixar o terreno, para confirmar que elas residem no local. Conforme o órgão, ainda não há um prazo para que comecem a ocorrer as mudanças. Uma nova rodada de negociações com a Defensoria Pública deve ocorrer em breve para determinar quando será paga a indenização.
Prefeitura garante permanência, mas quer mudanças na região
Apesar da decisão judicial, a prefeitura afirma que não irá obrigar a saída daqueles que desejam permanecer na Caddie. O Executivo diz estar buscando mediações com o MP para reverter o imbróglio.
— Em nenhum momento a prefeitura quis ou irá desprezar um território quilombola. Esse é um direito que não cabe ao município. O que a gente quer é que, quem quer sair tenha oportunidade de buscar um outro território, e que quem quer ficar possa ficar num território melhor — afirma o secretário de Habitação e Regulação Fundiária, André Machado.
Em paralelo, a prefeitura trabalha para acelerar a execução do Tcap e deve pedir a anulação do processo de reconhecimento do quilombo, por meio da Procuradoria-Geral do Município (PGM). Segundo o procurador-geral adjunto de Domínio Público, Urbanismo e Meio Ambiente, Nelson Marisco, independentemente da permanência de alguns moradores, o termo deverá ser cumprido com a criação de uma nova rua, o que implicará a reestruturação da comunidade.
O plano deve ser colocado em prática após a definição das negociações dos moradores com a Defensoria Pública. Marisco alega que é uma forma de oferecer melhores condições para as cerca de 20 famílias que desejam permanecer.
— Ao invés de ele (morador) morar nas atuais condições em que se encontra, sem tratamento de água, esgoto e luz, vai ser possibilitada a construção de um local mais adequado que viabilize a rua e a manutenção das pessoas que assim o desejarem — diz Marisco, acrescentando que as mudanças serão feitas antes de um possível reconhecimento do Incra.
Por outro lado, o advogado Onir Araújo, que representa os moradores quilombolas, defende que, mesmo sem o reconhecimento do território, eles têm direito de permanecer na área.
— Eles têm posse daquele território há mais de cem anos. E o direito protege essa posse — pondera.
O que diz o Ministério Público Federal
"O Ministério Público Federal está acompanhando o pleito pelo reconhecimento da vila Caddie como comunidade quilombola e espera, junto com outros entes públicos, como a Defensoria Pública do Estado, o Ministério Público Estadual, o Município de Porto Alegre e o Incra, que se construa uma solução para a melhoria da vida de todos os moradores daquela comunidade."
O que diz o Ministério Público
"O Ministério Público entende possível conciliar os interesses dos moradores da Vila Caddie que desejam sair daquele local e também os de quem lá prefere permanecer, razão pela qual apoia as tratativas do Município e da Defensoria Pública na busca de um acordo que contemple a todos."