— Para mim é muito bom. Eu sempre digo que quero ficar aqui, quero morrer por aqui, que aqui é assim: um ajuda o outro. É perto de tudo. Eu gosto muito de estar aqui — afirma Eunice Soares, 78 anos, moradora do Quilombo do Areal, no Menino Deus, em Porto Alegre, sobre a sua comunidade.
A aposentada é uma dos 17.496 quilombolas do Rio Grande do Sul, segundo dados coletados no Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os dados preliminares foram divulgados pelo órgão nesta quinta-feira (27). Os quilombolas são os povos descendentes e remanescentes de quilombos — as comunidades formadas por escravos fugitivos durante o período colonial e imperial no Brasil.
Esta é a primeira vez que o número de quilombolas é contabilizado pelo IBGE. Em todo o Brasil, essa população soma 1.327.802 pessoas.
O Rio Grande do Sul ocupa a 13ª posição nacional em números absolutos de quilombolas. Ao todo, o Estado tem 10.880.50 habitantes. Sendo assim, essa população representa apenas 0,16% desse total.
O Estado também registra mais quilombolas fora de territórios quilombolas do que dentro: nesses locais, há 2.892 pessoas desta população. Fora, existem 14.604 — ou seja, 83,43% do total. Os dados consideram tanto os territórios oficialmente delimitados (ainda em processo de reconhecimento), quanto os titulados (processo já finalizado).
Alan Alves-Brito, professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), coordenador do Núcleo de Estudos Africanos, Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi) e do Projeto Zumbi-Dandara dos Palmares, alerta que é preciso cuidado ao analisar esse dado, visto que, em muitos casos, os moradores vão e voltam das comunidades.
Neste mesmo sentido, o professor de História e integrante do Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes de Quilombos (Iacoreq), Paulo Sergio da Silva, lembra que os habitantes podem deixar as comunidades, mas ainda se identificar como quilombolas, mesmo não estando no território.
— Claro que a gente precisa explicar esses territórios muito além da própria dimensão espacial, agrária e geográfica, é um território cultural e de apropriação coletiva — afirma Silva.
Questões como emprego, estudos e até mesmo falta de espaço nas comunidades podem levar os moradores a deixá-las, conforme Alexandre Ribeiro, 50 anos, presidente da Associação Comunitária e Cultural Quilombo do Areal.
— No momento que o morador sai, ele também retorna para dentro da comunidade, participa das ações, tenta auxiliar. Não quer dizer que eles abandonaram, deixaram de ser quilombolas — pontua, lembrando que, para ser quilombola, não é preciso morar em uma comunidade.
Os dados do IBGE apontam uma tendência de maior ocupação por domicílio quando há ao menos um morador quilombola. Há 7.209 domicílios com essa característica no RS. Enquanto as residências em geral têm, em média, 2,54 moradores, aqueles com ao menos um morador quilombola têm, em média, 2,80 pessoas.
Dados do Brasil
Com 203.062.512 habitantes, o Brasil tem apenas 0,65% de sua população autodeclarada como quilombola. O país também registra mais pessoas desses povos fora dos territórios quilombolas. Dentro desses espaços, existem 224.644 quilombolas. Fora, há 1.103.158 — ou seja, 83,08% dessa população.
Cautela na análise
Para os especialistas, os dados podem estar sub-representados — porém, é necessário aguardar as informações completas e a descrição da metodologia utilizada no Censo para realizar uma análise aprofundada. Silva avalia que esse tipo de pesquisa censitária é “extremamente importante” por fornecer o quadro mais próximo do real possível. O Iacoreq, agora, planeja comparar os dados com levantamentos já existentes.
— Minha impressão é a de que, pelo menos dentro dos territórios quilombolas, tem mais gente do que está recenseado — opina.
A impressão se assemelha à de Alves-Brito:
— Eu acho muito (fora dos territórios), com base no que conheço das realidades das comunidades quilombolas do Rio Grande do Sul.
Mais significativa do que a porcentagem de quilombolas é a quantidade de comunidades dessas populações, números com estimativas sempre diversas, segundo o professor. Essa informação, contudo, ainda não foi divulgada pelo IBGE.
— Dos dados que a gente tinha oficialmente, havia cerca de 3 mil comunidades, o que dava da ordem de 2,2 milhões de quilombolas, em 2020. Está subnotificado em relação ao dado que a gente tinha. O dado também sempre foi contestado pela Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), que dizia que havia pelo menos 6 mil comunidades. E o Rio Grande do Sul tinha 146 comunidades estimadas, 11 delas urbanas somente em Porto Alegre.
Para o coordenador do Neabi, a coleta dessas informações é um grande passo e um marco na história. Para uma primeira estimativa oficial, ajudará, inclusive, a pensar o quão realista é. Porém, considera que foi algo “demoradíssimo”:
— Se a gente pensar desde a morte de Zumbi dos Palmares, em 20 de novembro de 1695, que marca a luta quilombola no Brasil, até chegar a 27 de julho de 2023, é muito tempo para ser o primeiro censo que inclui pessoas quilombolas. E a gente está falando de um regramento legal, porque a Constituição Federal de 1988 reconhece os quilombolas como sujeitos de direitos.
Os especialistas frisam a importância dos dados para planejar políticas públicas voltadas a essas comunidades, em termos de saúde, educação, cultura, segurança e até mesmo na luta histórica pela titulação dos territórios. Eles apontam um quadro atual de dificuldades no acesso a esses direitos e a estruturas.
— A importância, por exemplo, do reconhecimento e da articulação se dá muito para combater a própria questão do racismo estrutural da sociedade. Os quilombolas acabam sendo relegados ao segundo plano, a política pública não chega. Tem várias especificidades que acabam colocando-os em situação de desvantagem. A iniciativa do censo mostra que existe um público diferenciado e que precisa de políticas públicas diferenciadas para atender a essas demandas, que são grandes — explica Silva.
O professor da UFRGS aponta ainda outras grandes barreiras, como a questão histórica do racismo institucional e do racismo epistêmico, relacionado ao fato de não serem reconhecidos os saberes e os fazeres produzidos por essas comunidades.
— O fato do IBGE demorar tanto tempo para contar essas pessoas já é uma demonstração importante de como as instituições têm funcionado no Brasil — opina Alves-Brito.
Visibilidade
Para o presidente da associação do Quilombo do Areal, a coleta de dados é relevante para levar conhecimento ao restante da população, que, muitas vezes, não sabe o que são comunidades quilombolas. Eunice, a quilombola moradora do local, concorda:
— Tem muita gente que nem sabe o que são os quilombos. São quilombolas, mas não sabem que são, principalmente a juventude. E a gente está fazendo o possível aqui para eles saberem de onde vieram, a resistência que foi aqui, que quem morava aqui perto tiraram tudo, mandaram para a Restinga, para tudo que é lado, e a gente aqui ficou. É resistência.
A medida se torna, portanto, algo positivo para as comunidades.
— Para o pessoal poder interagir, entrar, conhecer realmente a necessidade de uma comunidade quilombola, porque muitos acham “ah, quilombo, estão se aproveitando”. Não, não é se aproveitar, são comunidades tradicionais — ressalta Ribeiro.
Ainda que a medida seja importante, o morador do quilombo do Menino Deus também a considera tardia, já que o IBGE já esteve na comunidade realizando pesquisas em outros anos. Por outro lado, ele celebra esse passo como uma vitória.
Durante toda a vida, Ribeiro morou no Quilombo do Areal. Ele afirma que cada comunidade tem suas dificuldades, demandas e preocupações, mas todas são acolhedoras. Acrescenta ainda que a diretoria tenta trazer ao máximo os órgãos públicos para dentro da comunidade para conhecer as demandas. Além disso, relata que universidades e órgãos privados já estão se interessando pelos espaços e promovendo iniciativas.
Quanto às dificuldades no Quilombo do Areal, ressalta que educação, saúde e segurança não são problemas. Porém, os habitantes gostariam de melhorias nas casas. Além disso, alguns não conseguem emprego.
— Está sendo uma dificuldade imensa. Porque muitos se atrasaram, e a questão de emprego cresceu em questão de escolaridade. Então muitos não têm a escolaridade ideal para aquele serviço. Eles sabem fazer, mas o que impede é a escolaridade. Isso para as pessoas de mais idade. Os jovens estão muito bem encaminhados — explica.
Outro problema relacionado à busca pelo emprego é o racismo, relata o presidente:
— Nós temos os jovens que têm faculdade, mas não conseguem aquele serviço, muitas vezes por causa da cor da pele. Isso tem que ser falado. Então tudo isso gera uma certa dificuldade para os moradores.
Entretanto, Ribeiro tem esperança de que, aos poucos, as pessoas aprendam mais sobre essa cultura, por meio do trabalho dos órgãos públicos e privados e da divulgação — e que isso resulte em mais possibilidades de estudo e emprego.
— Nós não queremos ser privilegiados, nós queremos ser respeitados. Só isso. O principal de tudo é o respeito. Portas abertas e portas fechadas vão existir sempre para qualquer pessoa. É só uma questão de ir, fechou, bater na outra que vai abrir — salienta.