Um conjunto de obras e projetos estimado em pelo menos R$ 424 milhões promete dar uma nova cara a uma das regiões mais tradicionais de Porto Alegre e impulsiona um debate sobre quais rumos o Centro Histórico deve seguir para resgatar o apelo que já teve no passado.
Especialistas em urbanismo concordam que a recuperação do patrimônio público e melhorias na paisagem urbana, que respondem pela maior parte das intervenções, são importantes para renovar o coração da cidade. Mas a estratégia para atrair novos moradores, outro eixo de revitalização proposto pela prefeitura, que inclui a permissão para prédios mais altos, divide opiniões de arquitetos e urbanistas.
Entre reformas em andamento, como a da Usina do Gasômetro, do Viaduto Otávio Rocha ou de ruas do chamado Quadrilátero Central, e intervenções ainda no papel sob responsabilidade pública ou privada, como a revitalização do Cais Mauá e o prédio idealizado pela construtora Melnick na Rua Duque de Caxias, os valores envolvidos na transformação do Centro chegam a quase meio bilhão de reais — só o Cais responde por uma fatia de R$ 353 milhões. A cifra total exclui o custo do projeto elaborado em parceria pela Melnick e pelo Grupo Zaffari porque o valor não foi informado. A iniciativa segue em análise pela prefeitura.
A possibilidade de se erguer um prédio de cerca de 90 metros de altura a contar do nível da Duque de Caxias (segundo informação da incorporadora) ilustra um dos principais pontos de discussão sobre os rumos do Centro, assim como a possibilidade de edifícios residenciais de grande porte na ponta norte do futuro Cais Mauá.
Em nota, a Melnick sustenta que "desenvolveu um projeto que conversa com o bairro, enaltece a vista da cidade e harmoniza-se com a arquitetura do centro. Todo o desenvolvimento contempla adequações para que o futuro empreendimento converse com as necessidades dos tempos atuais e com as características topográficas do terreno, que também tem frente com a Rua Fernando Machado. Respeitando as questões legais estabelecidas e vigentes, a Melnick realizou todas as adaptações de ordem técnica do projeto — ainda em estudo" (leia a íntegra do posicionamento da incorporadora ao final desta reportagem).
A prefeitura já flexibilizou regras construtivas para permitir estruturas mais altas e estimular investimentos como retrofit (adaptação de prédios antigos), e pensa em novas estratégias para aumentar ainda mais a atratividade da região. Uma das avaliações da Secretaria de Planejamento e Assuntos Estratégicos é de que o conjunto de medidas atuais ainda não provocou o efeito esperado.
— Uma das nossas preocupações é aumentar a ocupação do Centro, o que tem relação com essa proposta do prédio na Duque. Um prédio alto, diferenciado, que traria mais pessoas para a região. Além disso, temos muitos prédios que estão apenas parcialmente ocupados. Já temos uma lei de regime urbanístico destinada a estimular uma maior ocupação, mas a avaliação dos resultados até agora indica que poderia ser melhor. Estamos vendo se tem de modificar, porque uma coisa que dá vida ao espaço urbano é gente — sustenta o titular do Planejamento municipal, Cezar Schirmer.
O secretário informa ainda que estão em andamento investimentos em outras áreas como segurança, com a contratação de mais 61 guardas municipais para atuar naquela parte da cidade, além da instalação de 10 totens com videomonitoramento e botão de pânico que acionará um alerta no centro de comando e controle.
— Seguimos buscando como transformar o Centro em espaço com atrações de gastronomia, entretenimento, turismo e cultura para chamar mais pessoas. Também estamos buscando realizar mais eventos, para que tenhamos cada vez mais gente circulando à noite, aos sábados e domingos — complementa Schirmer.
Medidas para atrair moradores dividem urbanistas
A presidente do departamento gaúcho do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RS), Clarice Misoczky de Oliveira, defende que o foco da estratégia para o centro da cidade deveria ser a recuperação e a preservação do patrimônio histórico e arquitetônico do local. Na avaliação de Clarice, a região já é bastante povoada no geral.
— Segundo os dados do Censo de 2010 do IBGE, que ainda são os mais recentes que nós temos para esse tipo de análise, o Centro já é um dos bairros com maior densidade demográfica na cidade. Claro que a distribuição não é homogênea, temos áreas mais residenciais e outras mais institucionais, comerciais e de serviços. O rumo do Centro deve ser o da valorização do patrimônio. Não há como pensar em revitalizar, por meio do estímulo a mais moradias, descaracterizando a região — opina Clarice.
Conforme um relatório técnico elaborado pela prefeitura em 2021, o Centro Histórico é o "sexto bairro mais populoso, e o terceiro em densidade" no município, com 39 mil habitantes e uma média de 14,2 mil moradores por quilômetro quadrado. À sua frente, em termos de densidade, vêm o Bom Fim e a Cidade Baixa.
A representante do IAB argumenta que se poderia pensar em aumentar a quantidade de gente vivendo nas imediações, mas justamente nos pontos atualmente menos visados. Clarice observa que vias como Duque, Fernando Machado, Demétrio Ribeiro e Riachuelo já concentram muitas residências, em contraste com o eixo entre a rodoviária e o Mercado Público. Ela sustenta ainda que edificações muito altas, próximas umas das outras, tendem a prejudicar a insolação e a ventilação do entorno.
Vice-presidente da seção gaúcha da Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura (Asbea-RS), Ricardo Ruschel entende que reabilitações de bairros, centros históricos ou zonas portuárias precisam se sustentar sobre três pilares: moradia, comércio e serviços. Ruschel entende que ainda há muita margem para ampliar a ocupação em todo o Centro Histórico.
— O Centro está hoje como se encontra porque, lá pelos anos 1960, 1970, se começou a ter a ideia de ter só escritórios, ou ser um centro financeiro, e passou a perder o estímulo de moradia. O incentivo à moradia é muito bem-vindo, por mais polêmico que seja. Quanto mais gente morando, mais se aproveita a infraestrutura já existente e mais baratos tendem a ficar os imóveis. Claro que sempre vai haver áreas mais valorizadas, mas o ideal é que diferentes tipos de imóveis coexistam, os de R$ 2 milhões e os de R$ 300 mil. O problema é o extremismo, é pensar que uma região da cidade deve ter só imóveis caros ou só habitação de interesse popular — opina Ruschel.
Para o representante da Asbea, cada projeto deve ser avaliado individualmente levando-se em conta sua adequação aos parâmetros já existentes nas proximidades.
Professor e pesquisador do Programa de Pós-graduação em Arquitetura (Propar) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Sergio Marques avalia que, nas últimas décadas, houve um enfraquecimento do planejamento urbano e de critérios técnicos para nortear o crescimento das cidades, ao mesmo tempo em que a discussão sobre o futuro da Capital ganhou cada vez mais cores políticas.
— Há um fenômeno, que é inclusive internacional, de relativização do urbanismo como ciência, tanto nas administrações mais à esquerda quanto naquelas mais à direita, e que acabam tomando decisões mais com base em ideologia do que em análises técnicas — sustenta Marques.
O professor da UFRGS afirma ainda que é preciso avaliar com base em critérios objetivos a qualidade arquitetônica dos projetos a serem desenvolvidos em áreas como o Centro Histórico, o que inclui análise de capacidade de redes sanitárias e das vias públicas do entorno para atender novos contingentes de habitantes sem resultar em sobrecargas, por exemplo. Outro ponto decisivo, acima das questões ideológicas, é o mérito arquitetônico de cada proposta, segundo Marques:
— Projetos que impactam a cidade podem ter boa ou má qualidade. No caso (do trecho 1) da orla, por exemplo, desde o início houve polêmicas de toda ordem. O pessoal do meio ambiente reclamava que alterava questões naturais da orla, depois houve quem reclamasse da concessão de bares e restaurantes à iniciativa privada. No final das contas, a orla é um grande sucesso porque o projeto do Jaime Lerner era muito bom.
Posicionamento da Melnick sobre projeto da Duque de Caxias
Veja nota assinada pelo vice-presidente de Operações da incorporadora, Marcelo Guedes:
A revitalização e oxigenação dos centros históricos já é realidade em diversas capitais do mundo, inserindo a região no dia a dia das pessoas, para que tenham mais qualidade de vida. E, desde 2013, Porto Alegre tem feito movimentos de legislação neste sentido. A Melnick, como empresa que atua no segmento de construção civil e comprometida com a transformação da cidade, reforça que esse é um debate de toda a sociedade civil em prol do desenvolvimento e revitalização de Porto Alegre.
Assim como tem acontecido em outras regiões da Capital, como o projeto de revitalização do 4º Distrito, a Melnick vem para contribuir com o plano de renovação do Centro Histórico. Localizado em um amplo terreno da Rua Duque de Caxias e inacabado há mais de 40 anos, a incorporadora desenvolveu um projeto que conversa com o bairro, enaltece a vista da cidade e harmoniza-se com a arquitetura do centro. Todo o desenvolvimento contempla adequações para que o futuro empreendimento converse com as necessidades dos tempos atuais e com as características topográficas do terreno, que também tem frente com a Rua Fernando Machado.
Respeitando as questões legais estabelecidas e vigentes, a Melnick realizou todas as adaptações de ordem técnica do projeto - ainda em estudo. E a resposta arquitetônica em questão vai ao encontro da ideia de completar o vazio urbano, respondendo aos anseios de apropriação do espaço pelos usuários e moradores do Centro Histórico. Devido a isso, foi pensado para o empreendimento um boulevard com lojas, comércio, serviço e conveniência, todos abertos ao público. Desta forma, todas as pessoas que circulam pela região serão beneficiadas e poderão usufruir desse ponto.
As lojas, que formam o que seria uma grande praça coberta, realizarão uma conexão do trecho alto do Centro Histórico, ou seja, da Duque de Caxias, com o trecho baixo, a Fernando Machado, através de elevadores panorâmicos e escadas. Otimizando o dia a dia dos usuários pela acessibilidade, visto que a conexão atualmente é feita através de vias públicas bastante íngremes. Proporcionando novas opções de gastronomia, entretenimento e contemplação, gerando circulação de pessoas e promovendo uma real revitalização para a região.