Por Marcelo Träsel
Jornalista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
O vereador Ramiro Rosário (PSDB) publicou em GZH, em 23 de dezembro, uma elegia aos arranha-céus e pintou um cenário urbano digno dos melhores ilustradores de panfletos das Testemunhas de Jeová para a Porto Alegre do futuro (clique aqui para ler o artigo). Conforme o nobre edil, a mutilação do Plano Diretor proposta pela prefeitura de Sebastião Melo e aprovada pela Câmara, que liberaliza as construções de prédios no Centro Histórico e no 4º Distrito, é o melhor caminho para atender à demanda futura por moradia e por maior sustentabilidade.
Concordo com Rosário a respeito de algumas das vantagens da verticalização: ampliação da oferta de moradia a custo acessível e redução das emissões de carbono com deslocamento entre residência e local de trabalho. Além disso, eu acrescentaria a preservação de áreas verdes nos limites da cidade e a promoção de uma convivência mais vibrante. Acredito ser plenamente possível a formação de uma cidade sustentável, agradável e democrática através da aplicação das diretrizes arquitetônicas e urbanísticas contemporâneas.
Infelizmente, duvido muito que as políticas propostas pela prefeitura e sua base de apoio na Câmara levem Porto Alegre a essa utopia.
A Lei Complementar 930/2021, por exemplo, não exige contrapartidas significativas dos interessados em erguer arranha-céus sem limite de altura no Centro Histórico. Os construtores podem escolher quatro entre oito possíveis características condizentes com os preceitos do urbanismo sensato, como “utilização de cobertura verde do tipo rooftop, com priorização de acesso público” ou “qualificação das fachadas com frente para a via pública”. No entanto, todas as “contrapartidas” são características que valorizam o próprio imóvel a ser construído, exceto por aquela prevista no inciso IV do artigo 14º: “atendimento à DHP”. A Demanda Habitacional Prioritária se refere a imóveis destinados a programas como o Minha Casa, Minha Vida.
Noutras palavras, as incorporadoras poderão construir arranha-céus sem limites de altura no Centro e tudo o que precisam devolver à cidade são obras que valorizam seu próprio produto.
Os projetos citados pelo vereador são bons exemplos do que está por vir. O Complex 4D será um prédio de 130 metros de altura com quitinetes de 20 metros quadrados, custando cerca de R$ 200 mil cada, ou R$ 10 mil por metro quadrado, conforme anúncios. Nenhuma família de trabalhadores poderá se acomodar em um imóvel como este. Se tiverem esse dinheiro, é provável que prefiram morar no Sarandi ou Camaquã, onde podem encontrar imóveis de dois ou três quartos na mesma faixa de valor. Já o Cidade Nilo resolverá apenas o agudo problema urbano das famílias de classe alta que precisam disputar as quadras de beach tennis da Praça da Encol, visto que os apartamentos têm no mínimo 273 metros quadrados e estão anunciados por algo como R$ 6 milhões. Os vizinhos da parceria entre Zaffari e Melnick ficarão com a sombra e com a piora no trânsito já difícil da região.
Claramente, os empreendimentos-modelo da nova política urbanística porto-alegrense são voltados aos privilegiados do segmento fugere urbem, que foram morar no campo durante a pandemia, mas querem manter um imóvel pequeno na capital, a rentistas focados em alugar imóveis via Airbnb e afins, ou a pessoas de classe alta, as quais sempre estiveram bem atendidas.
O discurso de Rosário e do prefeito Melo, de que “adensar” a cidade vai permitir às famílias de baixa renda viverem mais próximas de equipamentos públicos, é só isso, mesmo: discurso. Elas vão seguir excluídas das zonas centrais, as quais serão dominadas pela especulação.
A legislação apresentada até aqui não demonstra nenhuma preocupação especial com os trabalhadores das classes C, D e E. É possível que o adensamento leve os mais ricos para zonas centrais e baixe os valores de imóveis em bairros a média distância de onde o trabalho e os equipamentos públicos estão? Pode ser, mas, se existe algum estudo da prefeitura a respeito disso, até o momento ele não foi divulgado.
Além disso, se este é o projeto, os bairros mais distantes podem se esvaziar. Com isso, os imóveis dos quais as pessoas de menor renda são proprietárias tendem a se desvalorizar. Quais políticas serão implementadas para o cidadão se realocar, digamos, da Restinga para o Partenon? Isso, claro, admitindo-se que promover a migração dos bairros mais afastados para os mais centrais seja algo realmente desejável. Será que os moradores da Restinga querem vir para um bairro mais central? Eu não sei – e aposto que Melo e Rosário também não sabem.
Em vez de olhar para cima e sonhar com arranha-céus futuristas, Rosário talvez devesse baixar os olhos para o nível da rua e pensar em formas de oferecer habitação para as famílias que vivem nas calçadas devido à crise econômica, ou encontrar uma solução para melhorar o cotidiano dos moradores dos bairros distantes que precisam se submeter ao degradado sistema de transporte público da cidade.