Os estrondos dos 32 tiros de canhão ainda podem ser escutados em algum lugar daquela noite de 31 de agosto de 1963. Eram 19h, e 34 mil pagantes, mais 10 mil convidados, além de representantes da imprensa, espremiam-se nas arquibancadas do Estádio Olímpico, em Porto Alegre. Eles acompanhavam a abertura da 3ª edição dos Jogos Mundiais Universitários, conhecidos como Universíade, realizados pela primeira vez na América Latina.
O país foi escolhido para sediar o evento em função do interesse demonstrado pelo presidente Jânio Quadros. A capital gaúcha foi eleita sede em janeiro de 1962, após disputa com Belo Horizonte. São Paulo, que recém havia abrigado os Jogos Pan-Americanos de 1963, não entrou no páreo.
No auge da Guerra Fria, sem a presença dos Estados Unidos e com dezenas de atletas de países comunistas na cidade, a Capital atraía os olhares do mundo.
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Os Jogos Mundiais Universitários haviam sido criados pela Federação Internacional de Esportes Universitários (Fisu) e pela União Internacional dos Estudantes (ISU), em 1959. A proposta era integrar atletas dos países socialistas e capitalistas.
As duas primeiras edições foram em Turim, na Itália (em 1959), e em Sofia, na Bulgária (em 1961). Tratava-se do terceiro maior evento esportivo do mundo, só perdendo em relevância para a Copa do Mundo de futebol e os Jogos Olímpicos.
As autoridades estavam preocupadas com a imagem que seria projetada de Porto Alegre. A Capital possuía 720 mil habitantes à época. Recebeu 713 atletas de 27 países – sem contar os demais integrantes das delegações, o que elevava o número de visitantes para 1,5 mil.
O prefeito José Loureiro da Silva apelou para os pichadores não deixarem suas marcas até o fim das disputas. O governador Ildo Meneghetti também se envolveu como pôde para a sede do encontro esportivo não fazer feio.
Os vendedores ambulantes foram rapidamente regularizados. O prefeito determinou que a Divisão de Limpeza Pública mantivesse em dia as ruas Ramiro Barcelos, São Luís, Luiz de Camões e a Avenida Ipiranga – o ginásio construído para abrigar os jogos de basquete ficava nas imediações dessas vias.
A Rua dos Andradas e arredores tiveram o calçamento restaurado. Os principais pontos turísticos receberam atenção especial, tudo para deixar a melhor das impressões. Policiais femininas foram trazidas de São Paulo para reforçar a segurança dos atletas. Da mesma cidade chegaram 20 caminhões abarrotados com 1,5 mil leitos (camas, travesseiros, lençóis e colchões usados no Pan).
Houve problema com uma cama que seria destinada a um soviético de 2m15cm de altura. Na ausência de uma unidade com o tamanho necessário, foi preciso fabricar uma especialmente para ele.
A cerimônia de abertura teve imensas filas em volta do Olímpico. Quem testemunhou e participou dessa história não esquece.
Guenther Stobäus, hoje com 86 anos, disputou provas no atletismo. Tinha 26 anos na ocasião e era vinculado ao Grêmio, chegando a ser tricampeão gaúcho de decatlo. Ainda guarda relíquias como um par de sapatilhas com travas salientes usado no arremesso de dardos.
— O desfile foi emocionante, lembro da massa aplaudindo — relata, exibindo a medalha de participação.
Stobäus, que não completou as provas de decatlo em razão de uma lesão, conta como sentiu o problema.
— Lamentavelmente, na quinta prova do decatlo, tive uma distensão na virilha e não pude concluir no dia seguinte. O atleta da Alemanha que ganhou (Manfred Pflugbeil) era muito famoso, me orgulho de ter competido com gente assim.
Stobäus compartilha o sentimento da cidade naquele momento por sediar o evento:
— Quase ninguém imaginava que Porto Alegre seria capaz de organizar uma Universíade. Foi um grande acontecimento.
O então presidente da Fisu, Primo Nebiolo, esteve em Porto Alegre um mês antes do começo da Universíade. Tentou tirar o evento da cidade, alegando falta de infraestrutura, e levá-lo para São Paulo. O Comitê Executivo o pressionou a mudar de ideia, o que acabou acontecendo. Mas a abertura não foi realizada sem problemas. Faltou luz antes dos discursos, durante dois minutos. Além disso, uma arquibancada suplementar desabou, deixando 10 feridos – todos sem gravidade.
O maior astro da festa foi Adhemar Ferreira da Silva, bicampeão olímpico do salto triplo, que acendeu a pira da Universíade e atuou como correspondente para o jornal Última Hora.
Medalhista de ouro no evento porto-alegrense, Eduardo Lawson, 81, que hoje vive em Rio Grande, integrava a seleção brasileira de basquete. Atuava como ala na equipe então bicampeã mundial – outra atração destacada da Universíade de 1963.
— O que marcou muito para mim foi a presença maciça de público que nós tínhamos nos jogos de basquete — recorda Lawson. — Eu tinha 21 anos e havia subido para a equipe adulta pouco tempo antes. Foi uma emoção muito grande participar dessa equipe constituída de grandes astros da época.
Walter Jone dos Anjos, 88, participou como árbitro em provas de natação e também de atletismo. Colaborou ainda fazendo o scout nos duelos do basquete. Possui recortes, boletins, jornais e revistas com a cobertura das disputas. Naquela época, cursava o segundo ano da Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
— Sou o guardião da bandeira. Foi hasteada no Olímpico e ficou aqui comigo — orgulha-se o aposentado, exibindo em sua sala a flâmula com o desgaste de seis décadas.
A bandeira que tremulou durante todo o evento acabou por acaso com Walter. Anos depois da disputa, um participante do cerimonial a entregou para ele, então presidente da Federação Universitária Gaúcha de Esportes (Fuge). Walter se emociona ao lembrar do evento.
— Em uma palavra só: foi indescritível — define, com a medalha de participação pendurada em torno do pescoço.
Ele também guarda uma tristeza ocasionada pelo descaso com a memória da Capital em relação à Universíade:
— Os locais de disputas são praticamente os mesmos, menos o ginásio (Ginásio da Universíade, depois renomeado Ginásio da Brigada Militar, hoje demolido) e o Olímpico (atualmente em inatividade). Essa é minha mágoa.
O ex-presidente da Fuge João Guilherme de Souza Queiroga, 67, era uma criança na época, mas sabe da magnitude do acontecimento – nem sempre reconhecido pela memória coletiva porto-alegrense.
— A Universíade de Porto Alegre é a única realizada no Hemisfério Sul do planeta, e ninguém dá bola para isso. A cidade mesmo virou as costas para o evento ao longo do tempo — critica.
Atualmente, o Centro de Memória do Esporte (Ceme) da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança (Esefid) da UFRGS mantém um acervo sobre a competição de 1963.
— A maioria das pessoas que a gente conversa não tem ideia. Estamos completando 60 anos de um evento que foi importantíssimo para a cidade de Porto Alegre naquela época — afirma Janice Zarpellon Mazo, idealizadora e coordenadora do espaço que existe no bairro Jardim Botânico desde 1996.
Entre os itens do acervo há uma medalha de ouro conquistada pela equipe brasileira de vôlei feminino, flâmula, maço de cigarros e garrafa de vinho com o logotipo da competição; boletins impressos e outros artigos, inclusive um pequeno equipamento de ginástica de madeira doado pelos japoneses depois do evento. Tudo foi cedido por participantes, competidores e por integrantes da Associação dos Moradores da Intercap.
— Tivemos aqui atletas olímpicos que vieram para o evento e no ano seguinte foram disputar as competições nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 1964. Percebemos que essa memória fica esquecida — atesta a professora, destacando que o local está aberto para pesquisas e consultas.
Os locais de provas e o quadro de medalhas
Foram disputadas nove modalidades na Universíade 1963: atletismo, basquete, esgrima, ginástica artística, natação, polo aquático, saltos ornamentais, tênis e vôlei. Sem atletas dos Estados Unidos, que ficaram de fora devido a uma alegada desorganização interna, quem chamava a atenção pela qualidade dos esportistas era a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
As provas de esgrima foram realizadas no Armazém D4 do Cais do Porto. O Grêmio Náutico União sediou natação, saltos ornamentais, ginástica artística e vôlei. A Associação Leopoldina Juvenil recebeu o tênis, enquanto o Petrópole Tênis Clube ficou com o polo aquático. A Sogipa abrigou partidas de vôlei.
As disputas de atletismo ocorreram no Olímpico, que, além da cerimônia de abertura, também sediou o encerramento. Este, apesar dos fogos de artifício, foi menos expressivo na comparação com a inauguração dos jogos.
O Brasil ficou em oitavo lugar no quadro geral de medalhas. Os destaques do país foram os ouros no basquete masculino e no vôlei feminino.
O basquete, modalidade na qual o Brasil ostentava o inédito e nunca repetido título de bicampeão mundial, levou multidões ao Ginásio da Universíade. Reforçada por jogadores como Vitor, Sucar e Jathir, a equipe nacional atropelou os adversários, vencendo por grande margem de pontos, na ordem, Argentina, França, Uruguai, Peru e, na final, Cuba. Entre os 29 gaúchos competindo, destaque ainda para Daisi Gavioli (bronze na natação) e Marseno Martins (bronze no decatlo).
Quem liderou o quadro de medalhas, ao final, foi a Hungria, com 19 ouros. A URSS ficou em segundo e a Alemanha, em terceiro.