Com todos a bordo, o marinheiro desenrola as cordas que atracam o barco ao trapiche do Gasômetro. Passando das 9h deste domingo (6), com não mais de 20 pessoas a bordo, a embarcação começa a flutuar nas águas do Guaíba envolta em uma névoa branca que impede a visualização do horizonte.
- Parece um barco fantasma - diz, sentado na proa, o enfermeiro André Silveira, 41 anos, que ingressou no passeio da BarCo a convite do namorado, o historiador Paulo Gabriel Alves, 33 anos.
A neblina que marca o início da viagem ressalta o mistério do destino: a Ilha das Pedras Brancas, também conhecida como Ilha do Presídio, que fica a dois quilômetros da costa de Porto Alegre, já no município de Guaíba.
O local é emblemático e sua história, pouco conhecida. Serviu de ponto de observação das tropas imperiais na Guerra dos Farrapos (1835-1845), depósito de pólvora do Exército até 1930, laboratório de pesquisas sobre peste suína em 1940 e detenção de presos políticos durante a ditadura militar iniciada em 1964.
Com uma mão segurando uma cuia e a outra o timão, Alexandre Hartmann, 57 anos, dono da BarCo, guia-se pela bússola e por um GPS para dar rumo certo ao barco adquirido em 2015. Com habilitação para pilotar concedida pela Marinha e autorização da prefeitura de Porto Alegre para turismo aquaviário, ele guia expedições pelo Guaíba há mais de cinco anos. Cobra R$ 80 pelo passeio até a Ilha do Presídio e R$ 60 para a Ilha da Pólvora.
Ex-atleta de vela, tem uma aparência que remete a marinheiro experiente, com os fios de cabelos esbranquiçados, pele marcada pelo sol e uma cicatriz de cinco centímetros no canto direito da boca.
- Tá um saco, não enxergo nada. Esse barco não é fácil, nenhum barco é. Daqui a pouco, de tanto o barco fazer zigue-zague, tô escrevendo nome de pessoa na água, como a gente diz - reclama o piloto.
Ao microfone, a historiadora Jane Cassol, 58 anos, compartilha informações sobre a ilha. O funcionamento como cárcere foi encerrado em abril de 1983, por determinação do governador Jair Soares. Quando Jane não pode participar dos passeios, Hartmann roda uma gravação com a voz da professora.
- Há vários passeios para as ilhas de Porto Alegre, mas a vantagem do passeio do Alexandre é esse caráter cultural - opina a historiadora.
A cerração se dissipa conforme o sol fica mais alto. Quando o barco se aproxima do município de Guaíba, com suas gigantes chaminés industriais fumegantes, a Ilha do Presídio desponta nítida e imponente no horizonte.
A porção de terra com cem metros de comprimento por 60 de largura abriga uma construção de 1860 e duas torres de observação erguidas bem no alto das pedras. É preciso navegar mais devagar para encostar no trapiche de madeira desgastado pelo tempo, de forma a não deteriorá-lo ainda mais.
- Tem que chegar bem devagarinho, na "manha", para não forçar nada, se não esse trapiche detonado pode vir abaixo - diz Hartmann, atirando as cordas para atracar o barco.
Embora o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae) tenha tombado a ilha em 2014, é da prefeitura de Guaíba a concessão para administrar o local. Ao sair do barco e colocar os pés em terra firme, rapidamente nota-se que a situação é a mesma da retratada por GZH em reportagem de 2020: papeis, plásticos e todo o tipo de lixo se espalham pelo mato.
Pichações cobrem as paredes da construção de dois pavimentos já em ruínas, principalmente do lado de dentro, onde há 10 cubículos para detentos. Não há qualquer placa que conte as histórias que já se passaram ali ao longo dos séculos.
- Se cada um de nós pegasse uma sacola plástica, já ajudava a diminuir esse lixo - diz o psicólogo Otávio Vendramin dos Santos, 31 anos, que tirou o domingo para passear com a namorada, a química Jucelaine Poletti, 35.
O passeio, entretanto, é arrebatador. Os tripulantes caminham pelos escombros das celas que antigamente abrigaram os presos e supõem o que os encarcerados possam ter vivenciado ali, totalmente apartados da cidade. Sobem nas pedras, fazem fotos e admiram Porto Alegre à distância, do outro lado do Guaíba.
- Achei muito legal. Claro, é muito triste saber de algumas histórias, mas também é bom saber o que aconteceu. É importante a oportunidade de fazer isso - diz a servidora pública Sandra Pacheco, 58 anos, que saiu de Ivoti, no Vale do Sinos, só para fazer o passeio de barco até a ilha com a família.
O que diz a prefeitura de Guaíba
A prefeitura de Guaíba sabe que barcos atracam na Ilha do Presídio, mas informou que somente duas entidades têm permissão para organizar visitas no local: a Associação Amigos do Meio Ambiente (AMA) e a Guahyba Associação de Canoagem.
Apesar disso, a assessoria do município disse que não é proibido que as pessoas façam passeios ali, e afirma realizar limpezas periódicas no local. Sem dar detalhes, falou que há projetos futuros. Em 2020, a antiga gestão havia informado a GZH a intenção de implantar um espetáculo de "som e luz, com embarcações ancoradas em torno da ilha". Não há sinais disso ou de qualquer investimento..
- Tem uma figueira que está nascendo no meio do prédio das celas. Se deixar, vai acabar com o prédio. Antigamente, não tinha essa vegetação alta que agora tem. Era mais limpo, para que houvesse visibilidade. Agora tem macega por tudo o que é lado - descreve Hartmann. Após deixar a reportagem em terra firme, ele partiu para organizar outro passeio, que levaria outras 70 pessoas para a ilha esquecida.