A Ilha das Pedras Brancas, ou Ilha do Presídio, localizada a dois quilômetros da zona sul de Porto Alegre, no lago que separa a capital gaúcha da cidade de Guaíba, foi depósito de pólvora, entreposto de transporte e observação durante a Guerra dos Farrapos (1835-1845), laboratório de pesquisas e inclusive local de recolhimento de mendigos. A construção erguida na pequena porção de terra funcionou como prisão para abrigar presos políticos por duas vezes na História, aponta o professor de História Bruno de Azambuja Silveira, que está concluindo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) uma dissertação de mestrado sobre o tema.
Em 1997, o governador Antônio Britto sancionou uma lei que reconhecia a “responsabilidade do Estado do Rio Grande do Sul por danos físicos e psicológicos causados a pessoas detidas por motivos políticos”. Silveira teve a ideia de buscar, no Arquivo Público, os pedidos de indenização motivados pela lei. Encontrou assim os processos referentes a 73 pessoas que haviam sido encarceradas na ilha pela ditadura.
A análise desses documentos revelou que o espaço foi usado para retirar militantes de circulação entre 1964 e 1967 e de 1970 a 1973. Na primeira fase houve oito vítimas.
– Esses primeiros presos tinham um perfil de oposição à ditadura mais vinculado ao período anterior ao golpe de 1964. Eram pessoas do PTB, da União Nacional de Estudantes e oficiais subalternos do Exército que não concordavam com o golpe. Eram prisões ilegais. A ilha foi usada de forma clandestina, para esconder os prisioneiros inclusive de órgãos do Estado, como o Judiciário. Nessa época, havia tortura na ilha – afirma Silveira.
Em agosto de 1966, o Diário de Notícias de Porto Alegre publicou uma notícia sobre o que, a princípio, parecia um crime comum: “Com as mãos amarradas às costas e com visíveis sinais de tortura, o cadáver de um homem foi encontrado boiando junto à margem esquerda do Rio Jacuí. Os peritos que examinaram o corpo estimaram em 30 anos a idade da vítima. As lesões causadas pelo espancamento e a deformação causada pelo tempo em que permaneceu na água impediram uma imediata identificação”.
O caso começou a mudar de figura quando se soube que a vítima era o sargento do Exército Manoel Raymundo Soares, integrante de um grupo que lutava pela volta do presidente deposto João Goulart ao país.
Naquele período inicial da ditadura, a imprensa ainda não estava amordaçada, e o chamado “Caso das Mãos Amarradas” ganhou as manchetes. Descobriu-se, graças a cartas que Manoel Raymundo conseguira enviar à mulher, que ele permanecera encarcerado ilegalmente na Ilha do Presídio por seis meses, depois de ser capturado pela Polícia do Exército e de passar uma temporada sob tortura no Departamento de Ordem Política e Social (Dops).
O professor Silveira acredita que o caso envolvendo o sargento pode ter motivado a desativação da Ilha do Presídio como cárcere político. A repercussão na sociedade, a abertura de uma CPI na Assembleia Legislativa, a visita de uma comissão de deputados ao local, o resultado escandaloso das investigações e as consequentes pressões de organismos internacionais teriam tornado inviável a continuidade do uso.
– O que era para ser um centro clandestino da repressão deixou de ser, porque saiu na imprensa. A sociedade ficou de olho – diz o pesquisador.
Mendigos recolhidos
Nos anos seguintes, a Ilha do Presídio deixou o papel de masmorra para quem não concordava com o regime, mas continuou a gerar polêmica. Em 2 de março de 1968, Zero Hora estampava em sua capa três fotos do local, sob o título “A ilha dos mendigos”. A reportagem, de Tânia Jamardo Faillace, revelava que 57 mendigos de Porto Alegre haviam sido removidos das ruas da cidade e recolhidos à ilha, onde viviam em condições precárias e sem assistência. “O pessoal fica tomando sol ou sombra à vontade. Ajudam nos trabalhos que querem, pescam peixes inexistentes, dormem, queixam-se da vida, arrastam pernas aleijadas e deformidades variadas, desde a cegueira até a falta de membros, desde a idiotia até a velhice. Reclamam a liberdade”, registrou a repórter.
A volta dos presos políticos ocorreria dois anos depois, em 1970. A ditadura havia baixado o Ato Institucional número 5 (AI-5), que suspendia direitos e impossibilitava qualquer tipo de oposição dentro das normas democráticas. Isso favoreceu o desenvolvimento de grupos que pregavam a luta armada. Segundo Bruno Silveira, são os integrantes dessas organizações que passam a ser levados para a ilha. Já não havia preocupação com a repercussão negativa – afinal, a imprensa estava manietada pela censura.
É nesse contexto que Paulo de Tarso Carneiro, membro da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), foi preso, em 6 de abril de 1970, dentro da agência bancária onde trabalhava, em Garibaldi. Dois dias antes, guerrilheiros haviam tentado sequestrar o cônsul dos Estados Unidos em Porto Alegre, Curtis Cutter, levando as autoridades a promover uma onda de prisões.
– Acredito que a tentativa de sequestro do cônsul provocou a vinda de muitos presos para a ilha. Na época existia uma construção por parte do regime de que esses caras eram terroristas de alta periculosidade, e a ilha estava isolada geograficamente, era uma área de segurança nacional e não havia possibilidade de algum barco se aproximar. Era uma facilidade para o sistema repressivo deixar as pessoas nesse lugar, porque não havia o desgaste de ficar em cima controlando, pois não havia como fugir – observa Bruno Silveira.
No primeiro dia na ilha, recorda Carneiro, os presos recém-desembarcados ficaram em um salão inundado pela chuva. Pediram uma vassoura aos policiais e começaram a varrer a área. Sugavam a água com panos e os torciam na janela. Depois vieram alguns colchões para passarem a noite.
No dia seguinte, foram distribuídos pelas celas, uma dezena delas, enfileiradas ao longo de um corredor que ganhou o apelido de “Avenida da Liberdade”. Nos piores momentos, chegava a haver de 10 a 15 prisioneiros em cada uma. Elas têm cerca de 20 metros quadrados, uma pequena abertura para entrada da luz no alto e um orifício redondo bem no centro, que servia como vaso sanitário – quando o Guaíba subia, limpava os dejetos. A lateral da cela que dava para o corredor era inteiramente ocupada por uma grade, que costumava ficar aberta.
– Fizemos um mutirão e começamos a limpar. Na sala de refeições, havia uma mesa com dois ou três dedos de sujeira, que a gente teve de raspar com uma faca. Caiamos as paredes todas e fomos ajeitando as celas, sempre reivindicando, conseguindo algumas vantagens. Depois, até um chuveiro elétrico apareceu. Também nos cederam medicamentos, e aplicamos injeções de penicilina em alguns presos comuns que tinham ficado conosco, porque estavam mal demais para sair. A sífilis era dominante ali – relata Carneiro.
A vida no cárcere
Os prisioneiros transformaram uma das celas em cozinha, para preparar os alimentos que eram trazidos pelos parentes aos domingos, dia de visita. Tudo o que recebiam era socializado. Outra cela virou biblioteca. Carneiro conta que o acervo chegou a 300 volumes. Parte dos livros entrava como presente de familiares, às vezes com uma capa falsa, em caso de obras consideradas subversivas. Outros eram trazidos da sede do Dops pelos próprios presos.
Quando deixavam a ilha para interrogatórios e torturas, eles costumavam ficar em uma sala do Palácio da Polícia onde eram guardados os livros apreendidos. Ali Carneiro abasteceu-se de Marx, Lênin, Trostky e Mao. Escondia os volumes sob a roupa, três ou quatro de cada vez, e contrabandeava-os para o presídio insular.
Para ocultar os livros de conteúdo mais delicado, os perseguidos políticos fizeram uma pirâmide humana e colocaram-nos em um vão na junção do teto com a parede.
No local também ficava um radinho no qual sintonizavam rádios de Cuba e da União Soviética, para colher informações sobre a luta contra a ditadura brasileira, nos momentos em que ficavam isolados porque uma ação importante acontecia.
A precaução revelou-se acertada. A polícia soube, por um delator também preso na ilha, que integrantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) tinham um plano de fuga. Em uma madrugada do inverno, militares removeram os presos, deixando-os seminus no frio durante horas, reviraram as celas e destruíram a biblioteca. Alguns dias depois, o delator exigiu de Carneiro o aparelho de rádio, que seria seu.
– Dissemos que não havia radinho nenhum. Então ele veio acompanhado de policiais e apontou: “O radinho que vocês colocaram lá em cima”. Os policiais trouxeram uma escada e pediram que um colega subisse para verificar. Esse policial, que tinha se tornado um cara muito simpático conosco, obviamente viu os livros e o radinho, mas olhou para baixo e disse: “Não tem nada aqui em cima” – relata Carneiro.
Entre os integrantes da VPR que organizaram o plano de fuga figurava João Carlos Bona Garcia, chefe da Casa Civil no governo Britto e atualmente com 73 anos. Ele também havia passado pelo Dops, com torturas incluídas, antes de ser encaminhado para a ilha.
– Havia uma ala que era do Dops e outra que era do Exército, tudo dentro do Palácio da Polícia. Tu eras interrogado dos dois lados, porque eles não trocavam informações. Apanhavas pelas mesmas coisas duas vezes – revela.
Bona Garcia confirma o plano de fuga, que envolveria 15 prisioneiros.
– Era verdadeiro. Tínhamos um plano de fuga, mesmo, só que era meio suicida. Primeiro, tínhamos de tomar a ilha, o que já era uma odisseia. E depois fugiríamos a nado. Quem está preso, o que tem na cabeça é sair.
Na ilha, quando a água subia, nós ficávamos até três dias sem poder tomar banho. Os espancamentos se sucediam porque parecia que tinham se tornado o hobby da guarda. Visita não podia. Cem homens se olhando, sujos, amontoados, cheios de muquiranas, com fome, na sordidez, com espancamentos. Todo o dia um olhando a cara do outro. Vê o ódio que gera isso tudo. Eu ficava pensando se os juízes tinham razão, se isso era sabedoria da lei. E se alguém podia imaginar o que estava ocorrendo no meio daquele rio. O pôr do sol, que dizem ser o mais fantástico, o mais lindo, tudo aquilo que era uma beleza, lá se tornou um nojo. Tínhamos vontade de vomitar o pôr do sol. O pessoal, para sair um pouco de lá, quebrava os braços. Naquele tempo se usava tamanco. O sujeito colocava o braço entre dois tamancos e outro pulava em cima do braço dele, no vão entre os tamancos. Quebrava o braço para tomar um ar, para ir até uma enfermaria.
JÚLIO DE CASTILHOS PITINELLI
Um dos poucos que conseguiram fugir da ilha, em depoimento a Zero Hora em 1983
Bona Garcia descreve a Ilha do Presídio como uma masmorra. As celas não tinham luz, passava-se frio e tomava-se banho no próprio Guaíba, sob o olhar de cães de guarda. Apesar disso, significava um alívio, porque não ocorriam torturas no local. Os presos formaram uma comunidade, dividiam tarefas, conversavam, liam, faziam exercício físico, tinham alguma liberdade para circular, recebiam familiares. Nos dias de visita, alguns até podiam se refugiar com a namorada em algum canto fora das vistas, atrás das pedras. O grande trauma era o barulho da barca chegando.
– Quando ela vinha, normalmente era para levar o pessoal para interrogatório. Eu saí para interrogatório assim. Amarravam, botavam na barca e tu ias para o Dops. Por isso, o barulho da barca significava o mesmo que o barulho da chave na porta para quem estava no Dops. Era um pavor. A gente sabia que ia para o pau – relembra.
Todos os participantes do plano de fuga, incluindo Bona Garcia , foram removidos da ilha e transferidos para quartéis (em janeiro de 1971, Bona Garcia tornou-se um dos 70 presos libertados em troca pelo embaixador da Suíça, que havia sido sequestrado pela VPR). Os demais presos políticos continuaram lá.
No dia 7 de abril de 1971, um ano e um dia depois da captura, Carneiro apareceu numa lista de presos que foram chamados e embarcados para Porto Alegre. O grupo passou horas dentro de uma viatura, à beira do Guaíba, até ser conduzido ao Dops. Lá, todos receberam advertências e foram libertados.
– Para mim, a advertência foi que, se eu me envolvesse de novo, não seria preso. Seria morto – diz Carneiro.