A história da Ilha das Pedras Brancas, ou Ilha do Presídio, no Guaíba, é recheada de episódios relevantes do passado, mas também de curiosos causos que entraram para o folclore popular – em um desses, em 1958, o ladrão Julio de Castilhos Pitinelli montou em dois panelões usados para fazer a comida dos detentos e navegou assim por 15 horas, até aportar na Ilha da Pintada, onde voltou a ser capturado.
Usada para o isolamento de presos políticos durante a ditadura militar, a ilha recebeu detentos no fim dos anos 1960. Entre as levas que chegaram ao local na década de 1970, estavam nomes como Raul Pont, futuro prefeito de Porto Alegre, e Carlos Araújo, que recebia no local visitas frequentes da mulher, a também militante Dilma Rousseff. Em 1973, o fluxo acabou. Naquele ano, o presídio foi desativado. Reportagens publicadas por Zero Hora na época revelam que o fechamento ocorreu de forma precipitada, em 16 de agosto, como consequência da morte de Eduardo Alves da Silva, ladrão de automóveis preso ilegalmente, que havia morrido por afogamento.
O pesquisador Bruno Silveira explica que, naquele momento, a ditadura já não via necessidade de ter um presídio político no local:
– Em 1973, o regime considerava que a luta armada estava derrotada.
Seis anos depois, o governo gaúcho anunciou que iria reabrir o presídio, para 40 detentos de alta periculosidade.
– Temos de proteger o cidadão honesto a qualquer preço e vamos reativar a Ilha do Presídio – afirmou o governador Amaral de Souza.
Durou pouco a nova fase da penitenciária. Reaberta em 1980, acumulou polêmicas. Em abril de 1981, ZH visitou o local e documentou as condições sub-humanas a que os 14 presos estavam submetidos. A ilha vinha sendo usada como castigo para apenados que tentavam fugir ou cometiam crimes dentro de outras penitenciárias. “A aparência de quem está dentro destas celas é a pior possível, e o lugar é úmido, cavernoso, feio demais”, relatava a reportagem. A comissão de direitos humanos da Assembleia Legislativa fez uma inspeção, e o governo do Estado admitiu a possibilidade de fechamento temporário.
Depois começou uma série de fugas.
Em setembro, Jardelino de Barros e João Carlos Bender conseguiram escapar, após serem mandados consertar uma antena de rádio. Em julho de 1982, foi a vez de Elias dos Santos Paes, o Soneca, de 23 anos, e Ricardo Machado de Oliveira, colocarem à prova a fama de presídio inexpugnável. Os dois detentos eram responsáveis por cozinhar para os demais presos. Em um fim de dia, estavam na cozinha e notaram que dois guardas haviam deixado coletes salva-vidas para secar sobre um muro. Apanharam os coletes e jogaram-se no Guaíba em uma noite de vento e chuva.
– Comemos bastante para não faltar energias e, à uma hora da madrugada, a gente caiu na água de calção e camisa, com os coletes nas costas. Nadamos uns 500 metros e escutamos tiros. Sentimos que já nos procuravam e que a coisa estava feia, porque ventava, as ondas cresciam e a gente podia morrer – contou Paes a ZH, meses depois.
Lanchas dos bombeiros foram enviadas, com faróis acesos, para as buscas. Chegaram a passar muito perto dos fugitivos, mas não os viram. Eles miravam o Estádio Beira-Rio, mas nadavam, nadavam e nunca viam terra. Depois de um tempo, se separaram por causa da correnteza.
– Nunca mais nos encontramos, mas acho que ele também conseguiu chegar na terra como eu – disse Soneca.
O jovem presidiário, receoso de ser pego se aportasse na região central, conseguiu nadar até a Ilha da Pintada. Exausto, descansou à beira do Guaíba, esperou as roupas secarem e apanhou um ônibus para o Centro. Foi preso cinco meses depois, após uma sequência de assaltos. Explicou assim a vida na ilha:
– Lá eu podia caminhar à vontade, mas é uma liberdade sem pé nem cabeça, porque a gente só vê pedras e água.
Bem mais grave foi o caso da fuga do traficante João Carlos Faleiro e do assaltante argentino Hector Thomas, que serraram as grades da cela, pularam para o pátio e saíram a nado na noite tempestuosa de 21 de setembro de 1982. Morreram os dois afogados. Pouco antes, o juiz Montes Lopes navegava pelo Guaíba com seu veleiro quando, ao aproximar-se da ilha, teve o casco da embarcação estraçalhado pelos guardas posicionados nas guaritas.
A ilha hoje
A sucessão de situações delicadas gerou reportagens, investigações, sindicâncias e questionamentos sobre a suposta alta segurança garantida pelo presídio. Enfim, em 4 abril de 1983, o governador Jair Soares fechou a prisão em definitivo.
Dias depois, a Secretaria da Segurança entregou o controle da ilha para a Secretaria de Turismo – e assim começou uma nova saga, que já dura quase quatro décadas, marcada pelas promessas de revitalização e transformação do local em centro de visitação. Em um primeiro momento, a Companhia Rio-Grandense de Turismo (CRTur) planejou erigir na ilha uma imensa estátua de Nossa Senhora Aparecida. Mais tarde, lançou um projeto com previsão de churrasqueiras, bar e museu.
Em 2012, a prefeitura de Guaíba, que recebeu concessão para administrar a ilha, apresentou um projeto de R$ 3 milhões, que incluía a restauração dos prédios para abrigar memoriais com a história da ilha, auditórios para eventos e uma lanchonete. A atual administração informou, em nota, também ter um projeto, em fase de finalização: “Umas das ideias é implantar um espetáculo de som e luz, com embarcações ancoradas no entorno da ilha”.
A cada dia que passa sem que esses projetos sejam colocados em prática, menos resta para recuperar. Resistem na ilha apenas carcaças maltratadas dos dois prédios e das duas guaritas.
Essa situação é lamentada por quem passou por lá. Bona Garcia e Paulo de Tarso Carneiro entendem que se trata de um descaso com a história e propõem um museu ou memorial sobre a ditadura militar, para que a repressão ocorrida no período não seja esquecida.
– O local está destruído. Dizem que são vândalos, mas vândalos não conseguem carregar grades de ferro do tamanho das que estavam lá dentro. São profissionais. Se possível, devia-se restaurar aquilo, deixando como era antes. Mas, como nenhum museu se sustenta sozinho, que fosse permitido às pessoas fazer turismo. É um local belíssimo – sugere Carneiro.
Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, acredita que a ilha é um ecossistema frágil e deve, por isso, ser poupada de visitantes. Propõe apenas a colocação de um marco, com uma inscrição do tipo: “Aqui estiveram presos brasileiros que lutaram pelo democracia”. A entidade que ele comanda também desenvolveu o projeto Marcas da Memória, que resultaria na instalação de uma placa, no Cais Mauá, com a lista dos militantes políticos que passaram pelo presídio. Ao longo dos anos, Krischke tem trabalhado em um levantamento de nomes, tarefa difícil, por causa da falta de registros oficiais. Em dezembro passado, ele chegou a 83 detentos.
– Acho que estamos quase no limite. O número não é muito maior do que isso. Do 82º ao 83º, fiquei um ano investigando – relata.
As principais iniciativas na ilha têm ficado a cargo da Amigos do Meio Ambiente (AMA), que firmou convênio com a prefeitura de Guaíba para promover ações educacionais. A entidade tem realizado mutirões de limpeza, instalação de placas informativas e visitas guiadas, que incluem aulas de História, geologia e ambiente. Para 2020, o projeto é realizar visitas todos os meses, cada vez enfocando um tema diferente. A AMA também está desenvolvendo um projeto, junto a arquitetos, para restaurar os prédios, criar um museu e oferecer um espaço para apresentações artísticas.
– Realizamos as visitas guiadas como forma de ocupação positiva, para evitar uma degradação maior e para criar uma cultura de visitas na ilha, sempre com muito cuidado e com a devida orientação. Nossa ideia é ressignificar esse espaço. Valorizar a história e transformar a ilha em lugar agradável para passar um dia e saber mais sobre a História e o ambiente – diz Eduardo Raguse, da AMA.
Por enquanto, as belezas da ilha estão ao alcance de poucos felizardos, como a gestora ambiental Marlene Vieira, 51 anos, possivelmente a pessoa que passou mais tempo no local desde que a penitenciária fechou. Ela sobe pedras com desenvoltura até alcançar as elevadas guaritas, se embrenha na mata que cresceu após o abandono, engatinha por vãos na rocha para aceder a praias recônditas, conhece cada trilha ou recanto.
Marlene e o marido moram em Guaíba, à beira do lago, defronte à ilha. Em minutos, conseguem chegar de barco. Autorizada pela prefeitura, ela levou muitas crianças para ações de educação ambiental. Também recolhe lixo e adverte visitantes descuidados. Às vezes, de casa, vê fumaça e corre à ilha, para apagar algum início de incêndio provocado por um churrasqueiro irresponsável. Quando a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz usou o espaço para uma série de encenações, chegou a morar lá, para zelar pelos equipamentos da trupe teatral, durante um total de três meses.
– Era maravilhoso. Acordava de manhã já com os passarinhos cantando. Daí eu saía para explorar. Comecei a conhecer os lugarzinhos onde ninguém ia. Desço, subo, sei onde ir. Tenho cada detalhe da ilha dentro da cabeça – orgulha-se.