Na Argentina, o movimento das Mães e das Avós da Praça de Maio já reuniu mais de uma centena de famílias que haviam sido separadas pela ditadura militar. Nos anos do regime na Argentina, entre 1976 e 1983, crianças e adolescentes foram sequestradas pelo poder oficial, afastadas de seus pais, mortas ou encaminhadas à adoção irregular. A praça, em frente à Casa Rosada, tornou-se símbolo de luta e de reencontros, exemplo maior da busca por reaproximar os que o autoritarismo separou, e não apenas na apenas na Argentina, mas também no Uruguai, no Paraguai e no Chile.
E no Brasil? Por que não há relatos desse tipo de crime? É o que o jornalista Eduardo Reina perguntava-se. Em 2016, o repórter, que já passou por diversas redações, entre as quais a d’O Estado de S.Paulo, finalmente descobriu e comprovou seu primeiro caso. E os caminhos se abriram para mais e mais histórias semelhantes.
Neste mês de abril, ele lançou o primeiro fruto desse trabalho, o livro Cativeiro Sem Fim – As Histórias dos Bebês, Crianças e Adolescentes Sequestrados pela Ditadura Militar no Brasil (com prefácio de Caco Barcellos, 308 páginas, R$ 54), parceria entre o Instituto Vladimir Herzog e a editora Alameda, que apresenta a vida de 19 crianças tomadas de suas famílias por agentes militares no país.
– As ditaduras do Cone Sul agiam de modo coordenado. A Operação Condor deixa isso claro. Então, não fazia sentido que só no Brasil não houvesse sequestro de crianças – diz Reina.
Cativeiro Sem Fim reúne 11 histórias referentes à Guerrilha do Araguaia, mas também casos de Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Paraná e Pernambuco e Mato Grosso. Há desde cooptação de adolescentes e jovens adultos à subtração de bebês e crianças pequenas com encaminhamento irregular para adoção.
José Vieira, por exemplo, tinha 24 anos quando foi levado pelas forças militares. De compleição franzina, foi considerado adolescente pelos agentes que o capturaram. O jovem foi levado por ser filho do agricultor Luiz Vieira, morto por oficiais, e ter sido avistado ao lado do guerrilheiro Antônio de Pádua Costa, o Piauí. Carregado para Belém (PA) e depois para um quartel na região do Araguaia, sofreu maus tratos e foi alistado como reservista, tendo seu certificado de reserva elaborado com informações falsas, como se tivesse 19 anos de idade. O jovem acabou liberado um ano depois, recebendo uma carta de reconhecimento.
Para Eduardo Reina, entre os objetivos desse tipo de ação, está a tentativa de educar as crianças sob uma ideologia contrária à dos guerrilheiros, mas também intimidar a população e obter vingança. Houve inclusive casos de ações com crianças erradas, como aquele sofrido por Juracy Bezerra de Oliveira, que foi confundido com o filho de um guerrilheiro quando tinha por volta de oito anos. Sequestrado, foi levado para um acampamento do Exército, onde apanhou de diferentes agentes. O mais grave ocorreu em uma madrugada, quando o menino foi alvo de fúria de um militar que tinha perdido um tio, morto com um tiro do suposto pai de Juracy. O homem partiu para cima do garoto, querendo queimá-lo em uma fogueira. Ao apoiar-se no braseiro com a mão esquerda, para não ter o corpo incendiado, machucou-se gravemente. Outros militares apartaram a violência, evitando consequências mais trágicas, mas Juracy perdeu para a vida inteira o movimento de três dedos, lesionados pelo calor.
Levado para um quartel em Fortaleza, o menino foi adotado por um tenente do Exército, que se tornou um pai ausente. Já adulto, voltou para a região do Araguaia, onde reencontrou a família biológica.
Há um discurso da 'ditabranda', de que a ditatura no Brasil foi menos violenta do que nos países vizinhos. No livro, provo com documentos que houve, sim, violência, torturas, sequestros e mortes.
EDUARDO REINA
Autor de "Cativeiro Sem Fim"
Já Lia Cecília da Silva Martins foi levada da região do Araguaia ainda bebê, com poucos dias de vida, por dois agentes para Belém, depois que seu pai foi morto na guerrilha. A menina permaneceu por três anos em um centro de acolhimento, então, acabou adotada por uma família de classe média. Aos nove anos, a família adotiva revelou as origens da jovem, mas afirmou não saber o paradeiro da família biológica, que Lia conseguiu buscar depois de adulta. Ela é atualmente grata aos familiares adotivos.
Esses casos todos expõem um pouco da diversidade das histórias encontradas, bem como da profundidade da pesquisa do autor, que viajou mais de 20 mil quilômetros por três Estados da região amazônica ao longo da pesquisa. Ele ainda enfrentou a dificuldade de estabelecer relação de confiança com as fontes, pois percebeu que o Exército exerce influência na área até hoje para que o passado permaneça oculto. Detalhes recentes da ação militar de silenciamento na área também são descritos no volume.
O livro é organizado com capítulos sobre cada caso, com farta documentação comprobatória. Por conta da recorrente citação aos documentos, a leitura é alguma vezes truncada, e até mesmo maçante em alguns pontos, fazendo com que Cativeiro Sem Fim não tenha apelo para se tornar um best-seller, apesar do tema ter potencial para tanto. A escolha por uma narrativa sóbria, constantemente amparada em provas, foi deliberada por Reina:
– Meu esforço foi para que tudo ficasse comprovado, para deixar bem claro que aquilo que está no livro ocorreu de fato. Há um discurso da “ditabranda”, de que a ditatura no Brasil foi menos violenta do que nos países vizinhos. No livro, provo com documentos que houve, sim, violência, torturas, sequestros e mortes.
Com menos de um mês desde o lançamento, o trabalho de Reina já está causando novas revelações. Desde a publicação, 19 pessoas procuraram o jornalista para narrar histórias parecidas com as que ele elenca no livro. Em breve, o autor deve realizar novas entrevistas e pesquisas para um novo trabalho sobre o tema.
– A ditadura no Brasil é um segredo, e o sequestro de crianças é um segredo dentro do segredo. Com Cativeiro Sem Fim, esse silêncio foi rompido, deixando o caminho aberto para mais verdades virem à tona – conclui Reina.