Com mais de 32 anos de atividade em Porto Alegre, a coleta seletiva de resíduos para reciclagem vem progredindo territorialmente, alcançando as principais vias em todos os bairros da cidade, mas parece não deslanchar como uma prática no cotidiano dos porto-alegrenses. A Capital, de acordo com a Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (SMSUrb), recolhe cerca de 46,7 toneladas diárias de lixo seco. Isso representa cerca de um quinto do potencial da cidade, que poderia reciclar até 250 toneladas de material por dia.
Tal dado demonstra que a capital gaúcha esbarra em menos de um quinto de sua capacidade de aliviar o ambiente da carga nociva dos plásticos, papéis, vidros, metais e outros agentes poluidores. E isso não é um fenômeno momentâneo. O cenário é praticamente o mesmo verificado há um ano e meio, quando GZH publicou reportagem sobre o tema. Na ocasião, o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) relatava que 51 toneladas eram coletadas por dia, diante de um potencial de processamento de 252 toneladas diárias.
Outro dado que demonstra a oscilação entre a estagnação e uma tímida evolução no comportamento sustentável da cidade é o recente levantamento realizado pelo DMLU sobre a coleta seletiva nos últimos anos. Conforme o estudo, em 2018 foram recolhidas 15.466 toneladas pela coleta seletiva. Em 2019, foram encaminhadas 15.522 toneladas para as unidades de triagem. Em 2020, foram coletadas 16.092 toneladas. Em 2021, 14.874 toneladas e no ano passado, 16.549 toneladas.
Pela estimativa baseada na capacidade instalada, em um sistema que tem 16 unidades de triagem de resíduos sólidos e uma estrutura de coleta e transporte dos materiais, a cada ano a Capital poderia reciclar mais de 80 mil toneladas, mas esse avanço insiste em não dar indicativos de que possa se tornar uma realidade.
— A administração municipal trabalha sob a lógica de que poderíamos avançar e muito, mas a seleção do lixo ocorre nas casas, nos condomínios, no comércio da cidade. Trata-se de uma decisão individual — avalia o secretário da SMSUrb, Marcos Felipi Garcia.
A incapacidade da cidade em progredir no volume de material reciclado ocasiona impactos negativos sobre a economia e o meio ambiente, acrescenta o gestor:
— Temos mais lixo de difícil degradação em locais indevidos, causando reflexos no ambiente da cidade. Pessoas deixam de transformar esse material em renda, ampliando aspectos da vulnerabilidade social. Por fim, o município gasta mais recurso público para transportar o que não é separado para destinos adequados.
A prefeitura estima que são despendidos R$ 9,5 milhões por ano para realocar esses resíduos para o local correto. O maior empecilho atravancando o fortalecimento da sustentabilidade, no entendimento das autoridades municipais, é a resistência das pessoas para uma mudança de comportamento.
— Se não houver um crescimento na conscientização e no engajamento, não conseguiremos melhorar esses indicadores — argumenta o titular da SMSUrb.
Consciência coletiva
O material recolhido pelos caminhões da coleta seletiva de Porto Alegre é levado para as 16 unidades de triagem conveniadas com o DMLU, gerando emprego para cerca de 600 famílias na cidade.
Na Unidade de Triagem Vila Pinto, no bairro Bom Jesus, 35 trabalhadores, a maioria mulheres, recebem e organizam materiais desde a forma como são recolhidos para que adquiram a apresentação que a indústria da reciclagem exige para que sejam comprados. No local, as pessoas abrem os pacotes encaminhados pelos moradores da cidade e selecionam em grandes porções divididas em 26 tipos de insumos para a indústria. O resultado, em uma jornada regular de oito horas diárias, é uma renda aproximada de R$ 1 mil por pessoa. As vendas são administradas pela própria equipe da unidade, que também é responsável pelo apoio às famílias participantes, que recebem repasse de cestas básicas e compartilham benefícios de outras iniciativas desenvolvidas no local, como um brechó beneficente.
— Parte dos materiais tem venda garantida, como latinhas de alumínio e alguns tipos de plástico. Para outros, a gente busca compradores — diz uma das coordenadoras da unidade, Sirlei Batista de Souza, 48 anos.
Em janeiro, a UT Vila Pinto recebeu cerca de 40 toneladas de material e conseguiu comercializar aproximadamente 27 toneladas.
O trabalho nas unidades de triagem extrapola a produção de oportunidades para geração de renda a pessoas por vezes deslocadas do perfil definido pelo mercado de trabalho para o desempenho de outros tipos de atividades. Ketlyn Mikaela de Souza, 21 anos, tinha 18 quando começou a trabalhar na separação de recicláveis na UT Vila Pinto. Durante sua ocupação laboral, manteve a concentração nos estudos e concluiu o Ensino Médio, fez cursos de computação e oficinas sobre vendas e atendimento no comércio. A jovem diz sentir-se gratificada pela permanência na reciclagem:
— Sei que é um trabalho braçal e que eu poderia tentar uma mudança para minha vida, mas me sinto confortável aqui. Convivo com boas pessoas e faço algo que considero importante.
Mikaela é a caçula entre os cinco filhos da Sirlei e constituiu, a partir da própria experiência com o trabalho da família, uma visão elevada sobre a responsabilidade com o ambiente.
— Melhorar o meio ambiente é tarefa de todos. Aqui, contribuímos por nós e por muitas pessoas, inclusive aquelas que nem mesmo se importam. Essas pessoas estão invalidando a vida no presente e reduzindo a própria perspectiva de qualidade de vida no futuro — analisa Mikaela.
Como funciona
Cada bairro de Porto Alegre tem dias determinados para a passagem dos caminhões da coleta seletiva. O serviço percorre as localidades ao menos duas vezes por semana. Em locais de grande concentração de pessoas e produção intensa de lixo, como o é caso do Centro Histórico, a coleta ocorre três vezes.
Os recicláveis (plástico, vidro, papel seco e metal) devem ser acondicionados em sacolas ou sacos de até cem litros. Para facilitar o recolhimento, as embalagens devem ser deixadas ao lado dos contêineres de lixo orgânico, nas ruas onde houver, e jamais dentro dos recipientes, para não ocorrer mistura. Onde não ocorre a coleta automatizada e, portanto, não há contêineres, o lixo pode ser deixado na frente do imóvel, indicando que se trata de lixo seco.
— A coleta seletiva é um serviço manual. Então é preciso cuidados. Vidros, lâmpadas, lâminas e metais pontiagudos, por exemplo, devem ser embrulhados para evitar acidentes — afirma o diretor-geral adjunto do DMLU, Vicente Marques.
Para evitar mau cheiro e contaminação dos materiais, inviabilizando a reciclagem, pode-se retirar o excesso de orgânicos das embalagens com guardanapo de papel ou a água de enxague das louças.
— Não se recomenda lavar as embalagens, pois o uso de água potável deixa de ser uma prática sustentável. O reaproveitamento da água da máquina de lavar louças também pode ser uma alternativa — complementa Marques.
Para saber em quais dias a coleta seletiva efetua o recolhimento e qual o melhor horário para colocar o material na rua, o DMLU disponibiliza um serviço de consulta no portal prefeitura.poa.br.
Algumas empresas e condomínios com mais de 50 apartamentos são qualificados pelo DMLU como grandes geradores de material reciclável. Para esse perfil há uma modalidade específica de coleta, para a qual podem credenciar-se a partir de solicitação pelo fone 156.
Um desses locais é o Condomínio Rossi Flórida, no bairro Jardim Carvalho, com 394 unidades habitáveis no total.
— São quase 400 casas produzindo resíduos que precisam sair nos mesmos dias e horários. É muito material. Antes de iniciarmos um projeto estruturado, isso aqui era um caos — lembra a gestora condominial Sabrina Duardes.
O conjunto habitacional possui dois pórticos para saída do lixo seco, onde caminhões podem se aproximar. No local, há recipientes específicos para vidros, papel e papelão, caixas de leite e sucos, para plásticos, metais, garrafas PET e, ainda, para descarte especial de óleo de cozinha, pilhas e baterias.
Terezinha Pereira da Silva, 67 anos, trabalha como babá no condomínio e acompanhou a estruturação do sistema.
— A reciclagem é uma boa ação. Preserva a natureza e ajuda no sustento de muitas famílias. Seria ainda melhor se mais pessoas cooperassem — avalia a moradora da Lomba do Pinheiro.
Pelo grande volume de material, o Rossi Flórida conta com seis visitas da coleta seletiva por semana.
— Essa frequência é fundamental. Tanto que nas segundas-feiras podemos perceber o acúmulo de material — observa a moradora Magda Salerno.
No apartamento dela vivem três adultos e duas crianças. Todos na família, exceto a caçulinha que só tem um ano de vida, compartilham a responsabilidade pela separação. Sofia, filha de 10 anos, garante Magda, é uma das mais engajadas no processo.
— Para a geração dela, a percepção de compromisso com o meio ambiente já é diferente, pois cresceram ouvindo que a natureza está sendo sobrecarregada pela ação do ser humano. Acho que ela se sente responsável e já sabe separar melhor que nós adultos — brinca.
Magda revela, entretanto, que nem todos os moradores cumprem com as normas. Diz que tem vizinhos que sequer desembarcam dos veículos para acomodar o lixo seco no local indicado.
— Abrem o vidro e jogam as sacolas, que ficam onde caírem — lamenta.
Por outro lado, ela considera positivos e indispensáveis os investimentos no local onde fica o lixo reciclável:
— Nós é que ganhamos com isso. É a afirmação de um compromisso com o futuro. Quero ficar velhinha e olhar o mundo como um lugar legal para se viver.