E se a periferia fosse o Centro? A pergunta é o título do livro elaborado por alunos da Escola Municipal de Ensino Fundamental Saint Hilaire, do bairro Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre, a partir de uma proposta feita em sala de aula. A produção é um convite para o leitor se deslocar de pontos centralizados e conhecer o cotidiano da Porto Alegre das periferias. Em diferentes gêneros discursivos, o livro traz o ponto de vista de 90 autores, de 13 a 65 anos, dos anos finais do Ensino Fundamental e da modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA).
— A inspiração foi escrever sobre uma Porto Alegre não tão vista e mostrada. Eu pensei em fazer um conto sobre uma mulher trabalhadora que vive aqui, na Lomba do Pinheiro, e vai para fora (do bairro) tentar conseguir um emprego, retratando a realidade que eu conheço — é como a aluna do 8º ano, Brenda Budtinger Viana, 14 anos, resume a ideia.
A atividade que conta com crônicas, poesias, prosa, histórias em quadrinhos, contos, opinião, entre outros, foi desenvolvida nas aulas do professor de História e Filosofia Marco Mello. A iniciativa do professor surgiu a partir de reflexões organizadas por um coletivo de professores, como PoAncestral — Muito além dos 250. Esse trabalho problematiza o aniversário da cidade e aborda a recuperação da memória e história da periferia, das classes populares, dos povos ancestrais, de ocupações indígenas, quilombos. Também foram inspirações, publicações sobre permanência da Filosofia em escolas públicas de Porto Alegre e o legado de Paulo Freire.
— Trouxe o José Falero e selecionei três crônicas do livro Mas em que Mundo Tu Vive? para os alunos. Lemos e discutimos e filosofia é isso, refletir sobre a prática de onde a gente vive. Aí, propus que cada um escolhesse uma temática para fazer uma crônica sobre uma Porto Alegre vista desde da periferia a partir de uma vivência, uma experiência. Foi incrível, foi um trabalho de produção de conhecimento. Eles escreveram, digitaram, corrigiram. Só de crônicas no livro temos 55, são muito diversas — explica o professor.
Os temas trazidos no livro a partir de vivências são diversos e abordam questões importantes e delicadas, como a pandemia de coronavírus, abandono escolar, violência contra mulher e racismo. Mas também contém traços da criatividade e da imaginação fértil de adolescentes, como a crônica da aluna do 8º ano Vitória Osório Rodriguez, 13 anos, que escreveu sobre naves espaciais e alienígenas aterrissando na Orla do Guaíba — o que não parece estranho com a série de relatos envolvendo objetos luminosos próximos de Porto Alegre, registrados nos últimos dias.
— Se eu sou sujeito produtor de conhecimento, sou cidadão e cidadã, eu tenho algo a dizer. Quem está no Centro tem que ouvir. Esse livro tem um sentido de afirmação do direito à educação e à crítica e que alunos sejam protagonistas — afirma Mello.
Para Andrew da Silva Rodrigues da Rocha, 17 anos, aluno do 9º ano, escrever foi uma das formas de expressar situações difíceis por meio de um personagem chamado Augusto:
"Às vezes penso sobre nossas escolhas e vejo um quanto somos falhos, em praticamente tudo. Independente disso eu mantenho as minhas esperanças na humanidade."
ANDREW RODRIGUES DA ROCHA
A sua vida por trás de uma máscara
— É sobre minha vivência, de outras pessoas e do cotidiano basicamente. Augusto é um rapaz que teve um passado complicado e que viu seus amigos morrendo por causa das drogas. Acredito que minha crônica se enquadra na vivência das pessoas que não têm oportunidade de estudar e trabalhar — conta o jovem, que também é estagiário da escola.
Mariah Clara Dias Paz, 15 anos, também estudante do 9º ano, teve como inspiração a vereadora Marielle Franco para a construção de sua personagem:
— Escrevi uma crônica e alguns poemas. Minha personagem é uma mulher negra, bissexual. Só consegui me expressar escrevendo porque tenho dificuldade no diálogo. Foi um texto que eu me apaixonei, e escrever é uma das coisas que eu quero fazer no futuro.
Releituras de clássicos
A professora de Língua Portuguesa Daniele Gualtieri Rodrigues integrou-se ao projeto que já estava em andamento. Uma das ideias de Daniele foi proporcionar o contato dos estudantes com obras e autores consagrados da literatura nacional como Carlos Drummond de Andrade. Após essa apresentação, a professora propôs que as turmas produzissem releituras que refletem, provocam e dialogam com autores e obras. Isso também está no livro.
— Sou uma entusiasta de que os alunos se apropriem da língua e da escrita. Embarquei no projeto e comecei a trabalhar com as turmas. Foi muito gratificante ver o quanto eles tinham para dizer do lugar onde eles vivem — afirma.
Ver o livro físico tornou mais real a experiência de participar da construção de conhecimento, como ela explica, e os alunos estão animados para ver em detalhes o resultado do trabalho hoje. Na folha de rosto, um mapa da região centro-sudeste da Capital evidencia o Parque Municipal Saint'Hilaire, a Barragem Lomba do Sabão e os cursos d'água das nascentes que vão até o Guaíba. Essa imagem é uma metáfora, conforme o professor explica:
— A periferia irriga o Centro e essa metáfora é real e muito forte. Quem sustenta o Centro é a periferia, trabalhadores da área de serviço, transporte e saúde, mas não são visibilizados. Produzir conhecimento nessa lógica é colocar eles em primeiro plano.
Lançamento ocorre hoje
Hoje, às 13h15min, no espaço da Escola Saint Hilaire, será lançado o livro. O momento contará com uma conferência de abertura conduzida pelo astrofísico, professor e escritor Alan Alves-Brito, que escreveu o prefácio do livro. A distribuição dos livros será gratuita para os autores e alguns exemplares serão destinados para escolas municipais e instituições.
— Inicialmente, conseguimos espaço na Feira do Livro, mas se a gente está dizendo que a periferia é o Centro, é aqui, na escola, que as coisas têm que acontecer. Eles vão autografar o livro, vão receber e produzir o conhecimento. Aqui tem um significado especial — conclui o professor.
Confira alguns trechos das produções dos alunos entrevistados:
"Em Porto Alegre existe muito machismo: homens matando mulheres por elas não quererem mais eles, homens agredindo mulheres dentro da própria casa e elas ficam lá, no cativeiro, uma prisão que elas tentam sair, mas são ameaçadas e no fim acabam mortas".
O Grampeador e a Crônica Feminista, de Anne Camile Dias da Silva, da turma 85
"As escolas e comércios não essenciais foram fechados e todos na cidade já usavam máscaras, mas na periferia não podiam se dar ao luxo de ter água encanada todo dia, o que diria máscaras e álcool em gel…"
Próximo Carnaval, de Jullia Justo Bueno, da turma 91
"Às vezes penso sobre nossas escolhas e vejo um quanto somos falhos, em praticamente tudo. Independente disso eu mantenho as minhas esperanças na humanidade."
A sua Vida por Trás de uma Máscara, de Andrew Rodrigues da Rocha, da turma 92
"Acordar cedo todo dia. A oportunidade não bate fácil na minha porta. Se duvidar, ela me bate na rua, por conta da minha cor e sexualidade. Ela não é fácil para mim como é para o filhinho do papai, que mora na avenida mais cuidada pelo governo."
Por que a Balança Pesa Tanto de um Lado Só?, de Mariah Clara Dias Paz, da turma 92
"O dia a dia na Lomba é assim: ir ao supermercado logo cedo pela manhã, é ir para o serviço, cedo. É ler o "Diário Gaúcho'' e debater sobre os preços dos alimentos, o aumento da luz e da água."
Dia a Dia na Lomba, de Danieli Soares Correa, da turma 81
"Enquanto o ônibus me leva até o centro de Porto Alegre, penso em como gosto de viver na Lomba do Pinheiro. Caso me perguntassem se eu viveria em outro lugar, com certeza responderia que não. Talvez fosse porque todos os meus parentes morassem lá, ou talvez fosse por causa das amizades incríveis que fiz com os moradores, mas, seja por um motivo ou outro, eu não trocaria a Lomba por nada."
Correnteza, de Brenda Budtinger Viana, da turma 85