Longe dos cartões-postais mais conhecidos de Porto Alegre, cenários em diferentes bairros conquistam o coração dos porto-alegrenses e de pessoas que foram abraçadas pela cidade. Para celebrar o aniversário de 250 anos da Capital dos gaúchos neste 26 de março, o Diário Gaúcho conversou com quem vive nas periferias para saber qual é o lugar de Porto Alegre que os representa.
Entre lembranças e experiências vividas, os moradores dos bairros Bom Jesus, Restinga, Sarandi e Ilha da Pintada compartilham as razões dos endereços não centralizados serem seus favoritos na Capital.
Nas águas do Rio Jacuí
Não é em terra firme que fica o lugar favorito de Porto Alegre para o casal de pescadores Luiz Carlos Maciel, 67 anos, e Marinez Maciel, 65 anos. Para quem nasceu na região das ilhas, como é o caso de Luiz, não é uma surpresa que sua parte preferida é dentro do Rio Jacuí, perto da Ilha da Pintada.
– A gente passa a maior parte do tempo aqui, de onde dá para ver a cidade. Todo o dia atravessamos (o rio) daqui para ir na outra ilha, a gente lida com as redes, com os peixes e com os barcos – conta Luiz, que além de pescador, trabalhou como maquinista.
O ar puro, o barulho da água e o silêncio, que não são comuns para uma Capital, fazem parte da rotina mais calma dos dois e, segundo eles, ali é o paraíso.
– Quem mora aqui não troca esse lugar. É o paraíso. Para nós, não tem como ser diferente, a nossa história é aqui. E Porto Alegre fica ali, de manhã cedo é tão bonita a vista – explica Luiz, enquanto mostra a paisagem.
– Fazia muito tempo que eu não ia à noite para Porto Alegre, de barco, mas esses dias fomos de madrugada, e vi aquilo tudo brilhoso, a ponte nova toda cheia de luz, que coisa mais linda que ficou – conta Marinez sobre o trajeto.
Em um espaço onde guarda os seus dois barcos, na Rua Nossa Senhora da Boa Viagem, o pescador relembra de momentos marcantes vividos na ilha, tempos em que o único meio de transporte acessível eram as embarcações. Ele expressa a admiração pela beleza de Porto Alegre:
– Tem tanta coisa bonita, mas acho que um dos principais pontos, além das ilhas, é o Centro Histórico. A gente conhece bastante essa região porque todos os dias íamos no porto. Cresci no mercado. Diariamente, tínhamos que trazer alimento do mercado, o pão, o leite, a carne. A gente fazia a volta nessa ilha (aponta para a Ilha da Casa da Pólvora) e saía bem na ponta do portão central, na doca C1. Levava o peixe no mercado, pegava o dinheiro e já trazia as coisas nas bancas.
Há 46 anos casados, Luiz e Marinez se conheceram à beira do rio. Ela, natural de Arambaré, veio com os pais para a Ilha da Pintada. O casal se encontrou na época da escola e, depois de casados, tiveram dois filhos que também vivem na ilha.
– Eu morava aqui e ela, logo ali, e a gente se conheceu e ficou esse grude aí – conta Luiz, com bom-humor. – É uma história de vida. Nós estudamos no mesmo colégio. Ela estudava com meus irmãos, mas aí vinha fazer trabalho ali em casa, eu ajudando meu pai com as redes, aquela velha história – conta aos risos.
A pescaria do casal é servida na Colônia de Pescadores Z5, um símbolo da Ilha da Pintada, onde tem almoços aos domingos. O carro-chefe é o peixe na taquara.
Uma parada de ônibus e de reflexão
Um ponto de ônibus à beira da Avenida Ipiranga, entre os bairros Partenon e Bom Jesus, é o local que a poeta, compositora, ativista social e cozinheira Fátima Regina Gomes Farias, 60 anos, define como um dos cenários que marcam sua vida em Porto Alegre. Moradora da Bonja há 25 anos, o trajeto de Fátima é o caminho de trabalhadores que descem o morro para pegar a condução. Entre as lutas do cotidiano, a poeta conta que, no local, observa a beleza e degradação da natureza e também reflete sobre a história do Arroio Dilúvio.
– Esse é o trajeto que faço quase diariamente, então torna-se aquele hábito, aquele ponto característico na minha vida. Sai de casa, bate a porta, caminha até a parada de ônibus e não sabe se vai voltar para casa. Já vem a reflexão de estar indo trabalhar e será que vou voltar? A gente, como poeta, fica pensando e, às vezes, até compõe e faz poesia no caminho sobre o trajeto do dia. Aí chove, tem o barro, a lama, a luta do dia a dia – relata.
Na passagem pelo local, junto da reportagem, ela mostra as aves se alimentando no arroio:
– Eu tenho momentos de reflexão, me debruço na mureta, faço uma foto. Vejo os pássaros e tem uns peixinhos, aquilo me surpreende bastante. É um pedaço de Porto Alegre que me encanta, é a história a qual já estudei. E a parte dolorosa é o abandono.
Nascida em Bagé, Fátima veio para a Capital em meados de 1980 e, logo de cara, não gostou da cidade.
– Eu morria de medo, não simpatizava com as ruas de Porto Alegre e em Bagé era tudo pertinho. Depois de uns 10 anos, se me perguntassem se eu gostaria de ir em embora daqui, com certeza iria responder que de jeito nenhum, eu amo Porto Alegre. A cidade é linda. Mas não gosto dos donos dela, daqueles que estão no poder, que nos achatam nos cantos e que não valorizam a educação e o investimento das periferias – explica.
Em Porto Alegre, Fátima passou a se valorizar como artista e encontrou espaços de poesia onde conheceu outras mulheres negras artistas. Após anos de ensaios em saraus coletivos e coletâneas, ela teve seu primeiro livro, Solo Mel e Dendê, lançado pela editora Libretos no ano passado. A autora que encontrou uma roda de poesia negra e, a partir daí, firmou sua própria identidade, reúne em sua obra poemas e alguns sambas, talento que herda de seu pai.
Se há um espaço de identificação com a cidade e inspiração para a arte de escrever, Fátima garante que é na periferia:
– É onde encontro trabalhadores parecidos comigo, na simplicidade, na inspiração, e há tristeza, assim como nos outros bairros também há, mas que não transparece por causa do status social. A cidade não seria cidade sem periferia e meu lugar preferido é a Bom Jesus. Amo a nossa quebrada, temos muitos projetos sociais e culturais. Dentro do ônibus e andando aqui é onde me sinto em segurança, no bairro onde eu moro.
Além da Bonja, a escritora afirma que tem carinho por outros bairros de Porto Alegre, como Lomba do Pinheiro e Restinga, onde participa de projetos culturais e tem amizade com outros artistas da periferia:
– Eu ando em toda Porto Alegre, então em cada pedacinho deixo um pedacinho de mim, e vou juntando para que os atos e fatos façam parte dos meus escritos. As imagens são muito importantes para minha escrita, a gente que é poeta transmite para os textos aquilo que enxerga.
Em relação a uma Porto Alegre que todos deveriam conhecer, ela refere-se primeiro à história da cidade. Já sobre o espaço, ela sugere:
– Acredito que o Largo do Zumbi dos Palmares. Eu gosto da Praça da Alfândega, onde é a Feira do Livro, e da Praça do Tambor, tem muita história ali.
Paixão pela Restinga
É no Centro de Comunidade da Vila Restinga (Cecores), ao lado do Campo do Pampa, no bairro Restinga, que o técnico em lazer Luiz Gustavo da Luz Rodrigues, 19 anos, define como um dos seus espaço favoritos na Capital:
– São pontos que eu sou apaixonado para passar um momento de lazer, mas também tem a parte esportiva que eu gosto bastante e venho com meus amigos. Além deles, tem meu coração dentro do bairro, o Instituto Federal.
Foi no IFRS Campus Restinga que Luiz Gustavo se formou no curso Técnico em Lazer. Hoje, ele atua como jovem aprendiz na AABB do bairro Ipanema. Segundo Luiz, o sentimento do qual hoje ele compartilha sobre o bairro veio da influência de sua irmã, Shaiane Rodrigues, 27 anos.
– Minha irmã, ao longo da nossa criação, se deparou com muitos entraves e me ensinou a superar essas dificuldades. E um lugar que ela viu muita força foi na comunidade, pois aqui tem tudo. Mesmo sendo um bairro que sofre com as desigualdades sociais, que atrelam todo o Brasil, também tem muita cultura e resistência popular – conta o jovem.
Entre suas memórias afetivas, Luiz relembra de um bloco de Carnaval que saía nas principais ruas da Restinga:
– É o Bloco das Donzelas, homens usavam roupas femininas e mulheres roupas masculinas, e concentrava muita gente nas avenidas principais. E eu tenho lembrança de ir desde os sete ou oito anos.
Em relação a pontos da Capital, Luiz cita lugares que proporcionam contato com a arte e cultura:
– Aprendi muito sobre a cultura estudando no Instituto Federal, então acho que todos devem ver esse lado na cidade, lugares culturais, que são até gratuitos. Por exemplo, na Cruzeiro, tem teatros a céu aberto. Não se vê muito sobre essas pessoas, que nasceram lá e vivem da arte.
Para encerrar, Luiz falou seus desejos para a cidade:
– Desejo muito progresso, educação para todos, transporte público de qualidade e, principalmente, saúde.
"Não troco o Sarandi"
A Praça Lampadosa, no bairro Sarandi, foi palco de muitas histórias vividas pelo casal Edson Loli Silveira Porciuncula, 60 anos, e Rosane Maria Valério Silvério, 58 anos. Ele mora no bairro desde os quatro anos, já ela, desde que nasceu. O campo bem cuidado da praça, com árvores, bancos e brinquedos, reflete o Sarandi que eles não trocariam por outro lugar.
– A minha infância passei praticamente toda aqui nessa praça, brincando. E quando matava aula, vinha para cá. Nunca sairia daqui, já pensamos em mudar para Santa Catarina, mas aqui é meu chão – afirma Rosane, que é auxiliar de limpeza.
Para Edson, conhecido como Edinho, o local remete a lembranças boas de quando se reunia com amigos na Associação dos Moradores das Vila Elizabeth e Parque (Amvep), que fica em frente à praça, em bailes e outras atividades, como a bocha.
– A gente chegava a contar os dias para a festa na Amvep. Dancei muito ali, vários conjuntos de música ao vivo. Aqui na praça é um lugar movimentado, principalmente, nos finais de semana e no dia da feira. O pessoal vem jogar bola aqui, famílias tomam chimarrão, crianças e cachorros correndo pra lá e pra cá. É muito bom, não troco o Sarandi por nada – explica Edinho, que é eletricista.
É tanto carinho pelo bairro, que o casal faz tudo por ali. Eles também citaram alguns pontos de Porto Alegre que só viram pela televisão, mas que desejam conhecer:
– É o lugar onde comemoraram o Ano-Novo, o Gasômetro, eu nunca fui lá e pela televisão achei muito legal – conta Rosane.
– Moro há 56 anos aqui e nunca andei no Catamarã, não sei se é por medo de água – conta Edson com bom-humor.
Outro fato marcante na vida do casal, que se encontrou há 26 anos, é que não teriam se conhecido não fosse a rota em comum que faziam todos os dias. Ambos trabalhavam Avenida Plínio Brasil Milano e pegavam a linha de ônibus 613 Elisabeth para voltar para casa. Certo dia, Edinho tomou a iniciativa e largou um bilhete com seu telefone no colo de Rosane. Ela ligou para ele e, resumindo, estão juntos até hoje.